Nos EUA, meninas africanas relembram dor da circuncisão

Motivo de preocupação de direitos humanos no exterior, mutilação genital feminina representa desafio para autoridades americanas

 

Em uma sala de aula do ensino médio no Brooklyn com paredes adornadas com problemas de álgebra, uma menina de 15 anos de idade nascida na Guiné conversava recentemente com suas amigas depois da aula.

O pequeno grupo – todas as alunas tinham raízes na África – não estava lá para discutir equações, mas algo muito mais pessoal. Uma delas estava compartilhando a memória do dia em que um vizinho em sua terra natal a enganou para que fosse a um hospital. Lá, ela foi amarrada e contida, e submetida à circuncisão.

Ela tinha 8 anos na época e teve de ser hospitalizado por causa do sangramento. “Eu fiquei doente”, disse a menina. “Eu estava prestes a morrer.” Depois que ela foi curada, uma festa de celebração foi realizada em sua homenagem.

Agora no segundo ano do ensino médio, a menina pertence a um grupo de jovens que compartilham a experiência de terem sido submetidas à circuncisão, procedimento que os críticos chamam de mutilação genital feminina.

A questão tem sido amplamente considerada uma preocupação de direitos humanos no exterior, mas está começando a representar um desafio maior nos Estados Unidos com um aumento no número de imigrantes de países da África e de outros lugares onde a prática é mais comum.

Uma conferência realizada nesta quarta-feira no Hospital Harlem, sediada pelo hospital e pelo Centro Africano para Mulheres e Famílias Sauti Yetu, grupo baseado no Bronx que trabalha para acabar com a mutilação genital feminina, terá como foco as necessidades físicas e emocionais da mulher circuncidada nos Estados Unidos.

EUA

A mutilação genital feminina é proibida nos EUA desde 1996. Alguns pais enviam suas filhas ao exterior para o procedimento, outras meninas são cortadas por familiares, sem o conhecimento dos pais durante férias no exterior.

Uma mulher de 19 anos, de Guiné, que foi mutilada antes de se mudar para os EUA, disse que sua irmã de 13 anos tinha 6 quando seus pais a submeteram ao procedimento durante uma visita à sua terra natal. “Já que ela estava lá, eles decidiram fazer isso”, disse a jovem, que vive no Brooklyn.

Como todos as jovens entrevistadas para esta reportagem, ela pediu para não ser identificada, dizendo que não queria ser publicamente associada a um procedimento íntimo e controverso.

Em algumas famílias os pais se opõem à mutilação genital feminina, mas a decisão sobre se a pratica deve ou não ser feita não é sempre deles. Muitos idosos das comunidades africanas têm grande autoridade social e não pedem autorização dos pais para ter o procedimento feito em uma menina.

A menina de 15 anos da Guiné foi circuncidada sem o consentimento da mãe, que estava morando nos Estados Unidos, enquanto sua filha era criada pela avó paterna – que também não foi consultada.

A mutilação genital feminina é controversa mesmo nos países onde ela é realizada, e os críticos têm pressionado seus governos há décadas para proibir a prática. Campanhas para acabar com a prática tem feito progressos em países como o Senegal e Burkina Faso.

A prática pode causar uma variedade de problemas médicos, incluindo hemorragias extensas, infecção, menstruação dolorosa e complicações durante o parto. Algumas mulheres não procuram cuidados por temerem a reação dos médicos.

“Me incomoda muito quando vou ao médico, como eles não entendem”, disse uma mulher de 18 anos, da Guiné, cujo aparelho genital foi cortado, que vive no Bronx. “O olhar no rosto deles revela que estão chocados e confusos.”

Tradição

A mutilação genital feminina é praticada em mais de duas dezenas de países africanos e partes da Ásia e do Oriente Médio, e a Organização Mundial da Saúde estima que até 140 milhões de mulheres tenham sido submetidas a ela.

A mutilação genital feminina é uma série de procedimentos realizados sem uma finalidade médica. Eles vão da clitoridectomia, a remoção de parte ou todo o clitóris, à infibulação, em que todos os órgãos genitais externos são retirados e a vagina selada, muitas vezes com os pontos deixando apenas uma pequena abertura. Apesar dos riscos e da polêmica, o corte é, em muitos lugares, feito com base em fortes convicções sobre a castidade, a limpeza e a maturidade.

“Isso não é feito com má intenção”, disse Zeinab Eyega, diretor-executivo do Sauti Yetu. “Isso é feito para abraçar a criança, para trazer a criança para a comunidade”. Todavia, Eyega disse que a prática é perigosa e precisa ser interrompida.

Independentemente dos argumentos sobre a prática, a experiência muitas vezes deixa lembranças indeléveis. “Aquele dia foi o pior dia da minha vida”, disse uma aluna do segundo ano do ensino médio, de 16 anos de idade elevada, no Bronx. Ela disse que foi circuncidada na casa de sua avó na Guiné, quando tinha 4 anos.

Um jovem de 17 anos que foi cortada na casa de uma tia, na Costa do Marfim, aprendeu sobre os riscos médicos assistindo a uma reportagem na televisão sobre uma menina que tinha sido cortada e não podia ter filhos. “Isso me faz sentir raiva, porque talvez possa acontecer comigo”, disse a jovem, que está nos Estados Unidos há oito meses. “E isso me faz sentir que minha tia mentiu para mim, mas eu sinto que ela também não sabe. Ela só me ensinou o que lhe ensinaram”.

Sauti Yetu e outras organizações mantêm grupos de ajuda para africanas estudantes do ensino médio e prestam aconselhamento a mulheres que foram mutiladas.

Alguns críticos da prática também pedem leis que tornem a prática de levar uma menina ao exterior para passar pelo procedimento um crime. “Não queremos impedir as pessoas de saírem de férias”, disse a assistente social Mariama Diallo. “Mas as meninas vão se sentir mais protegidas”.

Mas Eyega disse uma lei como essa poderia desencorajar as mulheres a relatar a circuncisão ou procurar ajuda, por medo de causar problemas legais para suas famílias.

O projeto é patrocinado pelos representantes Joseph Crowley, democrata do Queens, e Mary Bono Mack, republicana da Califórnia. Nevada e Geórgia, bem como vários países europeus, adotaram leis similares.

 

Fonte: iG

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