Gilmara de Oliveira, 28 anos, celebra a primeira gravidez. Fernanda Martins, 32, escolhe vestidos para levar as três filhas à igreja. Maria do Socorro da Silva, 27, está na fila do embarque para voltar ao Brasil, depois de trabalhar por 24 meses na Espanha. Geysa Maciel dos Santos Cruz, 23, procura uma casa para morar com o filho Carlos Ralf, de 8. Tudo não passa de desejo de familiares e amigos que ficaram na saudade. As histórias das quatro mulheres foram interrompidas um pouco antes do fim da gestação, da seleção das roupas, do início do voo, da formatura de Ralf. Gilmara, Fernanda, Socorro e Geysa estão mortas. Foram assassinadas de forma covarde em 1998, 2002, 2009 e 2011, respectivamente. Deixaram de viver por serem mulheres.
Não são as únicas. Facadas, tiros, pedradas, golpes de foices e de machados foram os modos de assassinar 4,5 mil mulheres no ano passado em todo o Brasil. É fácil matá-las. Estupros coletivos, torturas psicológicas e físicas, negligência e discriminação — ora mascarada, ora pública — sufocam diariamente brasileiras. De todas as idades — desde a menina de dois anos estuprada e morta a golpes de enxada no interior do Ceará à senhora de 76 anos estrangulada pelo companheiro no Rio de Janeiro. E de todas as classes sociais.
A elevada proporção de mortes de homens — cerca de 90% das vítimas de homicídios — esconde o fenômeno do femicídio, ainda pouco estudado no país. O Brasil não produz estatísticas oficiais de homicídios por sexo, na contramão de países vizinhos que, além de monitorarem as mortes de mulheres, tipificam o crime em leis. Costa Rica, Guatemala, Chile, Colômbia e El Salvador incorporaram no ordenamento jurídico a definição do femicídio. México, Argentina e República Dominicana também estão discutindo alterações na legislação. Em toda a América Latina, o ritmo acelerado com que esses homicídios crescem indica o massacre por questões de gênero.
A série de reportagens “Fácil de matar”, que o Correio publica a partir de hoje, traça o novo cenário das mortes femininas no país. Estimativas obtidas pela reportagem apontam o aumento médio de 30% nesses crimes na última década. No Pará, chegou a 256%. Em Alagoas, 104%. A violência doméstica, sem resposta eficiente do Estado, apesar da aprovação da Lei Maria da Penha, persiste. Mas são cada vez mais comuns as mortes encomendadas por organizações criminosas, ligadas ao narcotráfico, às redes de exploração sexual e às máfias das fronteiras.
Durante os últimos dois meses, a reportagem buscou os crimes, as vítimas e identificou os algozes, todos homens. A covardia segue uma mesma lógica, fundamentada em repetidas violações de direitos. Ao longo da produção da reportagem, pelo menos 286 mulheres foram mortas no país. As tragédias — que serão contadas ao longo da semana — se perpetuam nas capitais, no interior e ultrapassam fronteiras, fazendo vítimas do outro lado do Oceano Atlântico. Em meio às histórias, uma mulher foi escolhida para dar voz às sobreviventes, reféns agora do medo. Tereza teve mais de 40% do corpo queimado depois de o marido derramar gasolina nela e atear fogo. Preso, ele não desistiu de matá-la.
Invisíveis
A dificuldade em mapear as informações é a primeira comprovação da invisibilidade do problema para o Poder Público. O levantamento feito pela reportagem considerou dados das secretarias de segurança pública, das polícias e dos movimentos feministas. Em média, 4,6 mulheres são assassinadas por 100 mil habitantes do sexo feminino, podendo mais que dobrar em algumas cidades. Os índices se igualam ou mesmo superam, sozinhos, a taxa total de homicídios, incluindo mulheres e homens, de países europeus ocidentais (3 a 4 por 100 mil), da América do Norte (2 a 6) e na Austrália (2 a 3). Em relação à América Latina, o Brasil perde apenas para lugares como El Salvador, Guiana e Guatemala, onde grupos de direitos humanos já atuam para reverter o caos provocado pelas mortes. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS).
As únicas informações oficiais disponíveis no Brasil são do Ministério da Saúde, com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Divergem, no entanto, dos números da segurança pública e são prejudicadas por subnotificações. A série histórica das certidões de óbito comprova o aumento dos homicídios no país. Passa de 3,6 mil em 1996 para 4 mil em 2006. O próprio governo critica os dados. A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, ligada à Presidência da República, ignora o fenômeno. Em nenhum dos pontos destacados pelo Plano Nacional de Políticas para Mulheres, a redução dos assassinatos aparece. Segundo a ministra Iriny Lopes, a prioridade é a prevenção da violência*. As expectativas de reverter a matança recaem agora sobre a primeira mulher eleita para ocupar o Palácio do Planalto. Dilma Rousseff prometeu, no discurso de posse, “glorificar a vida de cada uma das brasileiras”.
*O destaque é nosso.
Reportagem do Correio Braziliense