Nossas subjetividades pretas também importam: potencializando nossos afetos

Ônibus lotado. Fila na entrega da senha de atendimento do cadastro único. Hoje, o médico não fez plantão no único posto de atendimento à saúde da comunidade. A creche está sem vaga para matricular minha filha. O carro do ovo não quis mais me vender fiado. O saque do bolsa família só na quinzena que vem. Ando sem tempo para desejar o amor.

Versos rimados de histórias reais da população preta que batalha todo santo dia pela sua sobrevivência. O “cumê” sempre será, nessa sociedade injusta chamada Brasil, nossa prioridade. Almoçamos pensando na janta. Dormimos pensando no café de amanhã.

As emergências concretas da vida cotidiana das pessoas pretas sempre foram (e é) a base circular dos nossos pensamentos. Nossas aspirações, sonhos e desejos estão entre o atravessar a faixa da miserabilidade social à ascensão e o status social.

Esse prisma resulta da própria história oficial e colonizada, que nos colocou abaixo de tudo, inferior a tudo. Se, na esfera social, somos sempre os “últimos da fila”; no campo dos afetos, não seria diferente. Achamo-nos indignos/as/es de sentir amor. De desejar amor. De ser amor. De se amar.

Há um sentido para esses (não)sentimentos. Esse não sentir está calcado numa lógica de total esvaziamento das nossas subjetividades. Esvaziar. Privar. Castrar. Não desejar. São verbos pensados para, justamente, matar qualquer possibilidade de Humano em nós. Não há reconhecimento da nossa ontologia. Nunca quiseram, e não querem, enxergar as nossas potencialidades subjetivas.

Se muito já fizemos “sem sentir”, imagina só quando estivermos reconhecendo e potencializando as emoções que pulsam em nós. É disso que eles temem. É por isso que preferem que a gente continue lutando somente pelo pão, e deixe de lado os afetos. Como se sentir, amar, desejar, escrever, poetizar, não nos fosse possível. Como se faltasse em nós a capacidade de inspiração e de sensibilidade.

Enganam-se eles. E continuam a se iludir. A nossa capacidade de sublimar a dor, o sofrimento, a solidão é tão produtiva que se chama: Blues, Jazz, Samba, Rap, Rima e Versos das nossas Escrevivências.

E quanto ao amor, estamos na luta por ele. Um amor demasiadamente liberto do romantismo eurocêntrico. Um amor que desce a ladeira do pelô, ou da favela. Que dá seus corres para chegar, onde os amores líquidos não molham. Um amor que se conjuga entre o Eu e o Nós. Que ginga a nossa ginga. Que come da nossa comida. E que ainda chegará com fartura nos nossos corações, cujos corpos negros carregam com preciosidade as memórias ancestrais que nos afetam.

Somos afetos. E afetaremos o sistema racista!


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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