Nossos corpos, nossas regras

Celebration XL

Abro espaço para texto Ana Paula Lisboa, da Maré, aderindo ao #AgoraÉQueSãoElas

Por Marcus Faustini No O Globo 

Conheci Ana Paula Lisboa em 2010, num projeto que realizei junto com Helô Buarque sobre memória e território como base de criação literária. Jovem, moradora da Maré, Ana carrega a alegria e dor de inventar a vida. Abro espaço pra ela por aqui esta semana aderindo ao #AgoraÉQueSãoElas — ação que convida homens a cederem seus espaços na imprensa para mulheres, para contribuir na pressão contra o PL 5069. Que as palavras de Ana sejam flecha no racismo e no machismo.

Nossos corpos, nossas regras

por Ana Paula Lisboa

“Eu venho de uma família de mulheres, mais que isso, mulheres pretas. Mulheres pretas de bunda grande, beiço grosso, braço forte. Para mim sempre foi muito natural o lugar que eu deveria ocupar: inspirada por elas, sabia desde criança que um dia teria uma família, trabalharia e não dependeria de homem nenhum pra nada. Porém, a consciência de que isso fazia parte de um universo de luta das mulheres — e que eu poderia ir além — só me veio depois. Mesmo assim, não deixei de admirar a minha bisavó que não havia ido pras ruas lutar pelo direito de trabalhar, ela trabalhou desde os 7 anos.

Eu era uma daquelas crianças que ouvia as conversas, que ficava atenta, fingia só estar brincando por perto mas estava na verdade ouvindo cada história. Às vezes era pega, mas na maioria dos momentos minhas tias, primas, minha mãe e minha bisa esqueciam que eu estava ali e contavam os segredos de família. Foi assim que eu soube o que era o aborto. Havia uma expressão, ‘comer com farinha’ (dar seu jeito), e se ela era dita todos já entendiam o que queria dizer. Sabia-se que o plano contraceptivo da época era gozar fora. Os métodos também apareciam nas conversas: agulhas, chás e o famoso Cytotec, esse para quem podia pagar. Eram histórias de dor, de hemorragias, de medo e vergonha de ir ao hospital, mas nunca ouvi relatos de arrependimentos.

Hoje a possível aprovação do PL 5069 também é um crime étnico, já que pobreza tem cor e são as mulheres pretas, como as da minha família, que dependem do SUS e de contraceptivos como a pílula do dia seguinte gratuita. Também são elas que, quando por algum motivo têm uma gravidez indesejada, não podem pagar por um aborto ‘seguro’. Enquanto se pensar no procedimento como uma questão de polícia e punição jurídica, e não de saúde, os abortos vão continuar acontecendo clandestinamente. As mulheres daqui continuarão morrendo. E os médicos de lá enriquecerão cada vez mais.

Como em várias outras áreas na estrutura da sociedade patriarcal, a disputa começa pela narrativa: o que é vida, onde ela começa, Deus existe, pra onde vamos, de onde viemos, o Estado é laico, a Bíblia é a verdade absoluta? A disputa é também de entendimento, de ponto de vista e de lugar de fala — como sempre é.

Essa semana li numa dessas discussões de redes sociais que as mulheres tinham muito ‘mimimi’ — leia-se atitude de mulherzinha — e um dos argumentos do cara era que 80% dos mortos no Titanic eram homens. Por quê? Porque as mulheres tiveram prioridade para entrar nos botes. Eu ri. Estou rindo agora. Vou rir ininterruptamente até 2020. Mas sei que é preciso disputar essas narrativas com nossas próprias histórias. Porque são historinhas repetidas como essas que dão base para a violência contra a mulher. Muito já foi dito, já foi publicado, já foi postado, compartilhado, curtido, eu só estou aqui porque representatividade importa. ‘É muito chato em 2015 ainda ter que falar disso, mas não podemos nos calar’, como disse a atriz Taís Araujo.

A forma como o corpo feminino é exposto durante a vida inteira de uma mulher faz com que outros se sintam donos deles, mais do que nós. Quando o nome e a foto de uma menina são expostos, mas o cara que fez publicações pedófilas tem seu nome e seu rosto encoberto nos prints, insinua-se ainda que a culpa é nossa, que a gente provocou, de quanto ele é homem e só estava agindo como tal.

Não terão redações de Enem em número suficientes para garantir direitos. Direitos esses que são instáveis e isso é o que mais me irrita: se piscamos e curtimos apenas uma noite que seja no Viaduto de Madureira ou no Baile na Nova Holanda, no dia seguinte um desses PLs é aprovado e anos de luta vão pelo ralo. Basta aparecer um sobrenome Cunha.

É preciso estar atento e forte, mais do que nunca. E essa atenção agora está nas ruas e vem de movimentos que me deixam emocionada como a Marcha de Mulheres contra Cunha que aconteceu semana passada e da Marcha das Mulheres Negras que acontece este mês em Brasília. De mulheres que me inspiram diariamente e eu poderia aqui citar tantas, mas vou citar só uma: Tia Maria, a mulher preta mais velha da minha família. Termino mandando um beijo pra todas nós enquadradas como mal-amadas, mal-comidas, que não têm uma louça pra lavar. Mal sabem eles como somos bem comidas, de como nos comemos também sem precisar deles. E que, na verdade, a louça é lavada antes de sair às ruas, ou quando voltamos, ou só no outro dia, ou por quem nós designarmos. Porque nossas louças, nossas regras. Assim como fazemos em nossos corpos!”

 

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