Nota pública: Contra a segregação por gênero nas escolas

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A Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação manifesta espanto e desagravo diante da notícia de que escolas no Distrito Federal adotaram a segregação por sexo/gênero no revezamento como estratégia para o retorno ao ensino presencial. O fato, infelizmente, não é isolado, pois politicas de segregação por sexo/gênero foram adotadas para restringir mobilidade e aglomeracões no Panamá, Peru e na cidade de Bogotá no ano passado como respostas à pandemia de COVID19. E, em 2021, algumas cidades brasileiras, inclusive o Rio de Janeiro, também adotaram regras de segregação por sexo/gênero para organizar as filas da vacinação. Em todos esses casos esse critério fere direitos, e, inclusive nos contextos latino-americanos aqui mencionados, as medidas tiveram efeitos reconhecidamente deletérios1. Contudo, a imposição de segregação por sexo/gênero tem implicacões históricas e ainda mais flagrantes no caso do sistema educacional. 

Ao fim de agosto, foi noticiado que duas escolas públicas do Distrito Federal haviam organizado o retorno às aulas presenciais separando os estudantes de acordo com o sexo/gênero, com “moças” frequentando a escola em uma semana e “rapazes” em outra2. De acordo com o Sindicato dos Professores no Distrito Federal, uma das escolas já havia revogado a medida e a outra estaria em vias de revogar. 

Mesmo que a medida tenha sido revogada, é preciso afirmar o enorme retrocesso que a segregação por sexo/gênero representa para a educação de crianças, e jovens, sobretudo da comunidade LGBTQIA+. Essa medida de segregação tem um duplo efeito. Por um lado, ela naturaliza ou reitera percepções e práticas de separação de espaços e papéis de homens e mulheres ou de meninos e meninas que sustentam desigualdades de poder, o desequilíbrio da divisão sexual do trabalho e também a violência de gênero. Isso não é apenas uma hipótese, visto que na justificativa da medida adotada por uma das escolas de Brasília, argumenta-se que a segregação iria facilitar a responsabilização das meninas por trabalhos domésticos e cuidados com irmãos menores, um evidente estereótipo de gênero. Por outro lado, tal medida tem um efeito negativo flagrante sobre estudantes cuja identidade de gênero não cabe na divisão binária de sexo/gênero e que terminam sem “ter lugar” no ambiente escolar. Mesmo sem essas regras de segregação, as escolas brasileiras já registram evasão escolar de 82% de alunas e alunos trans, que abandonam o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos3, assim como, no Brasil e no mundo, meninas e jovens mulheres têm o direito à educação negado ainda em alta proporção. É evidente que essa medida de segregação por gênero intensifica a exclusão de estudantes trans e não-binários. Também é extremamente grave que uma das justificativas para a segregação seja a responsabilização das meninas por trabalhos domésticos e cuidados com irmãos menores. Isso revela como a separação atualiza e aprofunda hierarquias e estereótipos de gênero e a divisão sexual do trabalho. 

A segregação por gênero significa um enorme retrocesso no direito à educação, ferindo seu ordenamento jurídico-legal. Escolas exclusivas para rapazes ou para moças existiram por séculos na história do nosso sistema educacional, promovendo um ensino diferenciado por sexo/gênero e reduzindo a educação de meninas e mulheres ao cuidado com a casa e a família. A luta histórica das mulheres pelo acesso à educação foi uma contestação das desigualdades. O resultado dessas lutas de longo curso é que hoje as mulheres, em geral, têm trajetórias escolares mais estáveis e longas, são maioria nos níveis mais elevados de ensino, o que tem impacto inequívoco sobre sua autonomia pessoal. 

Essas medidas inaceitáveis de segregação por sexo/gênero se somam ao cenário de persistência das desigualdades e exclusão escolar no Brasil e que afetam especialmente meninos negros. Ao invés de se combater o machismo, racismo e LGBTfobia estruturais que causam exclusão, o que assistimos hoje é a proliferação de modelos de escola baseados no sexismo e consequente exclusão da diferença. É o caso do decreto presidencial que cria a Política Nacional de Educação Especial e dificulta a matrícula de crianças com deficiência em escolas regulares. Também a militarização do ensino tem um de seus alicerces na exclusão, tanto pela cobrança de contribuições, que impede a presença de estudantes de famílias pobres, quanto pelo controle dos corpos e exigência de uma padronização estética baseada na branquitude, que prejudica a presença de estudantes negras/os/es. A educação domiciliar é outra proposta baseada na exclusão e no controle de crianças, adolescentes e jovens, segregando-as/os no mundo doméstico, prejudicando especialmente as meninas e crianças LGBTQIA+. 

O direito à educação só se efetiva com escolas abertas que acolhem a diversidade, sem discriminações e com respeito à diferença. Para isso, é fundamental que não haja nenhum tipo de segregação e que as escolas sejam territórios seguros para suas comunidades garantindo a liberdade para debater nossas profundas desigualdades sociais, raciais, de gênero, identidade de gênero e sexualidade. Isso está garantido na Constituição Federal, como confirmou, em diversos julgamentos, o Supremo Tribunal Federal.

Versão de 2209/2021 às 17h 

Assinam esta nota: 

1. Ação Educativa 

2. Artigo 19 

3. Associação Brasileira de Alfabetização (ABALF) 

4. Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio) 

5. Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) 

6. Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em Educação (ANPEd) 

7. Campanha Nacional pelo Direito à Educação 

8. Cidade Escola Aprendiz 

9. Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil) 

10. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) 

11. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de ensino (CONTEE) 12. Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) 

13. Geledès Instituto da Mulher Negra 

14. Grupo de Estudos e Pesquisas Subjetividades e Instituições em Dobras (GEPSID) 15. Grupo de Estudos em Diversidade, Educação e Controvérsias (Diversias/PUC-Rio) 

16. Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GEERGE / PPGEDU / UFRGS) 

17. Grupo de Trabalho Gênero Sexualidade e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (GT 23 ANPED) 

18. Grupo Experimentações: Grupo de estudos e pesquisas em currículo, subjetividade e sexualidade na Educação Básica 

19. Núcleo de Estudos em Educação Democrática Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (NEED FEUFF) 

20. Núcleo de Pesquisas e Estudos em Diversidade Sexual (NUDISEX) 

21. Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre Mulher e Relações de Sexo e Gênero, Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba (NIPAM/CE/UFPB) 

22. Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ-UFF) 

23. Observatório de Sexualidade e Política (SPW-ABIA) 

24. Professores contra o Escola sem Partido (PCESP) 

25. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


1 Ver  https://sxpolitics.org/ptbr/de-volta-ao-de-sempre-segregacao-por-sexo-genero-como-medida-de-contencao-da-co vid-19/10296

2 Reportagem do site G1: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/08/27/escolas-publicas-no-df-voltam-as-aulas-presenciais-c om-separacao-entre-mocas-e-rapazes-centro-de-direitos-humanos-questiona-segregacao.ghtml

3 Dado da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil. https://ubes.org.br/2019/escola-em-transformacao/

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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