Notas para uma história da literatura angolana

A passagem com a qual iniciamos nosso trabalho resume com enorme rigor, uma impressão comum a todos os estudiosos da literatura angolana, sua característica eminentemente histórico-social; ao mesmo tempo que explica prolongadas ausências de qualquer registro literário digno desse nome. Os autores angolanos estiveram sempre em primeira linha de combate pela libertação e pela dignificação do homem angolano e, o que não é raro, subordinando na produção literária a luta socio-política.

Os primeiros registros de produção escrita de um autor natural de Angola remontam ao século XVII. Sem querer dizer que não houvera literatura angolana antes desta época, a literatura de cunho marcadamente tradicional que conhecemos tinha, não obstante, uma característica determinante: a de ser oral. Por que só a partir dos primeiros escritos conhecidos pudemos ter algum conhecimento concreto sobre o assunto.

Um dos primeiros escritos da literatura oral, segundo Carlos Ervedos, em seu “Roteiro da Literatura Angolana”, por Saturnino de Sousa e Oliveira e, Manuel Alves de Castro Francina, um brasileiro e um angolano que, em seu livro, editado em 1864, Elementos Gramaticais da Língua Nbumdu, nos oferecem vinte provérbios em kimbundu(língua originária da região de Luanda e do centro e norte de Angola).

Em 1885, desembarca em Luanda o suíço Héli Chateilan, missionário dotado de uma vastíssima e sólida cultura que ensinaria bastante sobre a importância do conhecimento público da literatura tradicional angolana.

Depois de Héli Chateilan, outro nome se converteu em referência obrigatória no estudos da literatura tradicional: Oscar Ribas. o epítome de seus trabalhos de investigação se encontra reunido em Missosso, conjunto de três volumes. O primeiro nos apresenta vinte e seis contos e quinhentos provérbios; no segundo, a psicologia dos nomes, culinária e bebidas, passatempos infantis, vozes de animais e epistolário; o terceiro e último nos oferece adivinhações, canções, súplicas, cantos pela morte e instantâneas da vida dos negros.

Pertence também a primeira metade do século XIX a publicação do primeiro livro de poemas de um escritor angolano, Espontaneidades da Minha Alma – As Senhoras Africanas, Por José da Silva Maia Ferreira, natural de Benguela. “o livro(..) marcou uma época”, disse Gerald Moser na introdução da segunda edição de Espontaneidades da Minha Alma, pela União dos Escritores Angolanos: “Constituiu não somente a primeira obra da incipiente literatura angolana, posto que apareceu no momento preciso em que se debilitaram os antigos vínculos entre Angola e o Brasil”.

Com a abolição do tráfico de escravos em 1836 e a substituição gradual por uma colonização baseada na agricultura e no comércio, a partir dessa época, começou a produzir-se na sociedade de Luanda e Benguela, portos de saída de escravos para a América do Sul, favorecendo uma maior estabilidade econômica e social, o que deu origem a uma primeira burguesia africana.

Entenda-se aqui burguesia africana na acepção de Mário António Fernandes de Oliveira, um eminentíssimo historiador da literatura angolana, em sua obra, A Sociedade Angolana do Fim do Século XIX e um Seu Escritor: “A população negra e mestiça cujo contato com o europeu se converteu em um elemento culturalmente distinto”.

A população européia que ao largo do século XIX viveu nas primeiras cidades de Angola estava essencialmente constituída, segundo nos diz Júlio de Castro Lopo, “por africanistas de permanência incerta no território, aventureiros, colonos forçosamente ligados à vida colonial por necessidades econômicas e contrariedades diversas, missionários e clérigos, militares e deportados”.

Luanda e Benguela, como portas de saída dos escravos para a América do Sul, eram as cidades que tinham o maior número de habitantes. Comparadas com as cidades de hoje, não passavam de minúsculas vilas, apesar de contarem àquela época, com alguns séculos de existência . Em 1851, Luanda tinha uma população de 12.565 habitantes, dos quais 9270 eram negros, 6020 escravos, 2055 mestiços e somente 1240 brancos. Entre estes últimos, o número de mulheres era insignificante.

Desta forma, numericamente inferior, disseminado pelos distintos bairros da zona urbana, o homem português, dado o reduzido número de mulheres brancas e graças as suas legendárias capacidades de adaptação e de convivência com outros povos, absorveu o legado tradicional africano, cruzando-se com mulheres angolanas, determinando uma sociedade, todavia única no contexto africano, em que os mestiços gozavam de alguma relevância. É este o marco de onde se assiste a aparição de uma elite angolana. Elite económica primeiro, elite cultural depois.

Estas pessoas desenvolviam suas atividades profissionais no comércio, na função pública e nos tribunais; e encontravam no periodismo nascente o primeiro grande veículo para a expressão de suas principais aspirações. Rapidamente, a imprensa se transformaria num lugar de privilégio para o debate sócio-político.

Ao longo de quase toda a metade do século XIX, se assistiu ao nascimento de diversas publicações. O Boletim Oficial, fundado em 1845, foi o ponto de partida. Seguidor das funções oficiais para as quais foi criado, desempenhava também as funções de um periódico que, apoiado por uma pequena elite de europeus recém ligados a Colônia, contribuía consideravelmente para o incremento do periodismo em Angola.

Assim se sucederam várias publicações entre os anos 1845 e 1880. Ali se foi esboçando uma primeira linha de homens que, sendo europeus, viviam cotidianamente os problemas da colônia, fazendo da imprensa uma ampla tribuna para a defesa de seus interesses. O procedimento tornou-se tradição e, mais tarde, o periodismo se converteria na principal arma de luta dos intelectuais africanos.

Entre os europeus que se destacaram nesta fase do periodismo angolano, figura o nome de Alfredo Trony, bacharel em direito pela Universidade de Coimbra e que residiu durante muitos anos em Luanda, onde faleceu em 1904. Fundou e dirigiu os periódicos “Jornal de Luanda”, em 1878, o Mukuarimi, em 1888, e supõe-se, o “Conselhos do Leste”, em 1891.

A exemplo do que ocorria com a grande maioria dos intelectuais dos finais do século XIX e princípios do século XX, que eram simultaneamente periodistas e escritores, Alfredo Trony inscreveria também seu nome entre os grandes da literatura angolana com a novela “Nga Muturi”, publicada inicialmente em forma de folhetins na imprensa de Lisboa e reunida em um livro quase cem anos depois.

“Nga Muturi” constituiu, seguramente, um marco histórico nas letras angolanas erigindo-se como um importante documento cultural e sociológico, ao retratar, com grande rigor, uma época de referência da vida de Luanda.

Contudo, e não obstante a colaboração de inumeráveis africanos, estas publicações se caracterizavam, em sua maioria, pela defesa dos interesses econômicos e administrativos da Colônia, lutando pela abolição da escravatura e contra as prepotências de alguns governantes, em desacordo com os interesses mais reducionistas da metrópole. Sendo aquelas publicações dignas de todo mérito e tendo sido muito importantes para a época, não foi todavia a partir delas que se iniciou a luta pelos direitos humanos e pela firmação intelectual, cultural e política dos africanos.

O primeiro periódico editado por africanos, “O Hecho de Angola”, data de 1881. Sua aparição abriria caminho para o despertar de novos órgãos daquela que se chamou a imprensa africana, que se caracterizou por conter publicações redigidas ora em kimbundu ora em português. Entre estas, destacam “O Futuro de Angola”, 1882; “O Farol do Povo”, 1883; “O Arauto Africano”, 1889; e “1 Muen’exi”, 1889; “O Desastre”, 1889; e “O Policial Africano”, 1890.

Se a imprensa propiciou a aparição de uma classe de intelectuais angolanos, logo, a partir de meados do século XIX, o que a primeira vista pode parecer um paradoxo, ela foi responsável ao mesmo tempo pela tão incipiente produção literária de Angola, até os anos cinqüenta deste século. E ao mesmo tempo que, através dela, uma série de periodistas angolanos desenvolveram suas atitudes contribuindo com seus artigos e suas polêmicas para a vida intelectual de então, na imprensa encontraram o lugar ideal para a luta por seus ideais sociais e políticos. Inspirados pelas idéias liberais que chegavam da Europa, foram implacáveis em sua crítica a tudo o que ofendesse os princípios de justiça, e lutaram contra a corrupção e a falta de honradez. É neste contexto que surge em 1886 o periódico “O Serão”, obra literária destinada a preencher uma lacuna que naquele momento, e pelo que podemos ler em seu primeiro editorial, se fazia sentir no meio: “A política e o comércio já tinham quem lutasse por seus interesses. Para nós pois, a literatura que pretendíamos estava voltada para a exploração somente de uma superfície, não só como um modesto incentivo de acudir aos que são ricos em inteligência, senão também como agradável e inofensivo passatempo que abreviasse e tornasse suportáveis aquelas largas e exaustivas noites”.

A exemplo de muitas outras publicações da época, este periódico teve uma vida bastante curta, posto que não passou do quarto número.

Somente dois dos escritores deste primeiro movimento nos deram livros. Pedro de Félix Machado e Cordeiro da Matta. Ao primeiro corresponde a publicação da novela “Cenas d’ África”, em uma primeira edição em forma de folhetim na Gazeta de Portugal. A reedição da novela data de 1892.

A Pedro Machado são atribuídas também as autorias de um livro de sonetos, “Sorrisos e Desalentos” e de dois monólogos, “Beijos e “Uma Teima”.

Cordeiro da Matta, natural de Icolo e Bengo, foi autor de numerosas obras, desde a novela até a etnografia, passando pela poesia, a crônica, a história, a pedagogia e a filologia, ademais do próprio periodismo no qual se destacou nas colunas de “o Arauto Africano” e “O Farol do Povo”.

Por outro lado, Cordeiro da Matta era um profundo conhecedor de kimbundu, sua língua materna. E é como profundo conhecedor de kimbundu que também publica a obra “Ensaio de Dicionário de Escrita”, “Segundo a Cartilha Maternal”, do Doutor João de Deus. Como historiador, nos deixou a “História de Angola”, publicada em forma de folhetim em “O Farol do Povo”. Por último, com cronista e novelista foi autor de duas obras: “O Luandense da Alta e Baixa Esfera” e “O Doutor Gaudencio”, cujos manuscritos, infelizmente, se perderam.

Com a perda das colônias do Oriente primeiro e do Brasil depois, e sobretudo, depois da abolição da escravatura, Portugal se viu com a necessidade de intensificar a exploração dos territórios africanos, a qual não podia continuar da maneira como era feita então, de forma puramente mercantilista, sem falar na ameaça de que eram objeto os territórios portugueses por parte dos holandeses e ingleses. Assim, de colônia penal, Angola se transforma em colônia de ocupação. Quando os portugueses começaram a chegar em número crescente, a partir de meados do século XIX, encontram já uma burguesia nacional em pleno desenvolvimento, constituída, em sua maioria, por negros e mestiços.

Naturalmente, o crescente número de europeus acentuou as tensões existentes. A imprensa livre colonial começa progressivamente a dirigir seus ataques contra os “negros indígenas”, sobretudo pelo modo com que estes não se haviam convertido todavia em instrumentos dóceis de trabalho para o fácil e rápido enriquecimento dos colonos contra os “negros e mestiços inativos”, pelo destacado lugar que ocupavam na estrutura social e econômica.

A partir dos finais do século XIX, os ataques sobem de nível. Já em 1901, a “Gazeta de Luanda”, único periódico que então se publicava, publicou um artigo – “contra a lei”, pela greve – cujo autor manifestava o mais escandaloso reacionarismo colonialista, ao afirmar a inferioridade do negro em relação ao branco e negando ao primeiro o direito mais elementar: o de formar uma parte da humanidade.

As respostas não se fizeram esperar. Uma obra coletiva de onze autores, “Voz de Angola”, e “Clamando no Deserto”, foi publicada em Maio de 1901. Apesar destes terem guardado o anonimato por razões que a repressão de então justificava, segundo a perspectiva do historiador Julio de Castro Lopo, sabemos que se tratava de : António José do Nascimento, Pascoal Jé Martins, Francisco das Necessidades Castelbranco, Mário Castanheira Nunes, Carlos Saturnino, Augusto Silvério Ferreira, Carlos Botelho de Vasconcelos, José Carlos de Oliveira Nunes, Eusébio Velasco Galiano Júnior, João de Almeida Campos e Apolinário Van Dúnem. Entretanto a obra sobrepuja o âmbito de uma mera resposta e postula já alguns dos princípios que vão orientar a vida das sucessivas gerações de intelectuais angolanos: a luta pela autodeterminação.

Daquela que se chamou a primeira geração angolana de intelectuais, até a geração de 1980, as obras que citamos são a melhor indicação do que se produziu na segunda metade do século XIX e na que o periodismo figura em um lugar destacado. Junto ao periodismo, foi sem dúvida a poesia quem, como outra forma literária merece ser destacada no final do século XIX.

Fato muito comum era também a aparição de numerosos periodistas entre os poetas de maior renome, como é o caso de Arcénio do Carpo, Faria Leal, Urbano de Castro e o já muito citado Cordeiro da Matta.

No final do século XIX, por volta de 1896, é quando se assiste a aparição de um novo grupo de jovens intelectuais, o grupo que mais tarde se chamou de a geração de 1896. Talvez tenha sido esta a geração de maior destaque entre os intelectuais angolanos, antes da geração da mensagem, em 1948;esta última é a que estaria presente no acontecimento da luta armada em 1961. Composta por vigorosos pensadores, animados, como seus antecessores, pelas melhores intenções e dispostos a tudo na luta em favor dos interesses dos angolanos, a geração de 1896, impulsionada pelos mais puros ideais, procurava elevar a sociedade a qual pertencia a um estado mais alto de sua evolução. Entre outros, são dignos de destaque os nomes de Pedro de Paixão Franco, Augusto Silvério Ferreira, Francisco Castelbranco, Vieira Lopes, Francisco Taveira, Apolinário Domingos Van-Dúnem, Ernesto Santos, Jorge Rosa e Lourenço do Carmo Ferreira.

Este grupo possuía uma orientação programática e como ponto de apoio para sua atividade tinham a difusão da educação e da instrução entre seus compatriotas. Desde esse momento, aqueles pensadores compreenderam que na instrução do povo estava o ponto de partida para o desenvolvimento socio-econômico do país, opondo-se desse modo a tendência acentuada do sistema colonialista à desfiguração sócio-cultural e histórica de Angola.

De todos os nomes anteriormente enumerados, é o de Pedro da Paixão Franco o que adquire maior importância. Carlos Ervedosa disse a esse respeito: Pedro de Paixão Franco foi, apesar de sua morte prematura, a figura mais destacada de sua geração. Seu nome e sua personalidade se mantiveram, ao longo do tempo, na memória de seus compatriotas, que guardam dele uma imagem de combatente incorruptível ao serviço de seu país e seu povo.

Os jovens desta geração assumem já um ideal de autonomia política. No segundo número de “Luz e Crença”, publicação literária dirigida por Pedro da Paixão Franco e publicada em 1903, podemos encontrar muito claras suas aspirações:

“A autonomia e as aspirações de todos, é boa e todos a desejam, inclusive os que lucram com a atual situação (…)”.

“Luz e Crença” nasce, um ano antes, em 1902, constituindo uma coleção de ensaios literários dos escritores locais que reunia também contos, poesias, temas da história e etnografia, entre outros, afirmando-se como um movimento intelectual com o objetivo de servir aos ideais da educação, a justiça e a liberdade. “Não sejamos indignos do século das luzes em que nascemos” disse Paixão Franco nesse primeiro número; “Que aprenda cada um a sua maneira e mestre o que sabe, para que os mestres das emboscadas na noite da ignorância se convençam de uma vez para sempre de que o rebanho de carneiros vai desaparecendo. Ou cidadãos ou servis aduladores”.

Ademais da direção de “Luz e Crença”, deixou também para a história a publicação de “História de uma Traição”, obra que estaria na origem de seu assassinato. Deste livro, impresso em uma tipografia de Oporto, restam muito poucos exemplares, dado que depois de sua morte todos os exemplares desapareceram misteriosamente do Porto de Luanda. Só os poucos exemplares que o autor havia recebido antecipadamente da editora em Portugal e que havia oferecido a alguns , muito poucos, familiares e amigos, escaparam da presumida destruição.

Voltando à produção literária: a título de introdução, Pedro da Paixão Franco dizia na primeira página do primeiro número de “Luz e Crença”:

“(…) Queremos luz, muita luz, porque onde não há luz não há fatos, disse um gênio justo e colossal. Queremos uma enxurrada de luz. Luz para admirar a porta triunfal que abre…. luz para ver os antros onde se refugiam os tigres sociais. Lua para seguir o largo caminho rumo ao futuro”.

Ademais de “Luz e Crença” temos também referência a outra publicação de periodicidade semestral, algo semelhante, dirigida por Francisco Castelbranco, que se apresentaria com o nome de “Ensaios Literários”. Por outra parte, no centro de toda esta atividade literária, aparece a Associação Literária Angolana, fundada por Augusto Silvério Ferreira e na qual colaboraram Francisco Augusto Taveira, Apolinário Van-Dúnem e Manuel Augusto dos Santos entre outros.

Entretanto, a medida que se avança no século, cada vez se faz mais intensa a pressão colonial sobre a pequena burguesia africana, sobretudo sobre os jovens intelectuais que, incansáveis, não paravam de denunciar, sempre através da imprensa, os abusos e a prepotência de uma comunidade crescente de europeus, ávida de terras.

Um nome muito importante que surge nesta época é o de António de Assis Júnior, que apesar de pertencer a geração de 1896, só um pouco mais tarde conseguiu alguma notoriedade.

A importância de António de Assis Júnior na literatura angolana é enorme. Além disso não existem outras publicações importantes durante o período que vai de 1910 a 1940, adquirindo suas obras, desse modo, um ponto de referência obrigatório. De fato, a geração de 1896, se silencia a partir de 1910. Como nos fala o manifesto de Henrique Guerra no prólogo de O Segredo da Morta, “neste período de quase não literatura(…) é quando se desenvolve a atividade de nosso homem. António de Assis Júnior se ergue como uma figura quase isolada, como um gigante que domina uma fera”.

Na esteira do trabalho desenvolvido por seus correligionários, Assis Júnior defendia uma posição que pugnava pela defesa das referências culturais e pela aspiração a um estabelecimento definitivo de uma literatura própria, o que só se concretizaria mais tarde com Castro Soromenho.

Sua primeira obra, “Relato dos acontecimentos de Dala Tando e Lucala”, escrita no cárcere em 1917, como do próprio título se deduz , é o retrato da amarga experiência pela qual passou em sua tentativa de impedir que alguns indígenas fossem tivessem retirados seus bens e fazendas. Logo foi acusado pelas autoridades coloniais de ser o “autor ou dirigente de um movimento xenófobo”. Por último, o que lhe levou ao cárcere por duas vezes, em 1917 e 1922, foi sua retitude de caráter, a honradez com que defendia os indígenas, por meios legais, o que constituía um obstáculo a política de rapina e espoliação, uma das grandes chaves para a implantação da ordem econômica dirigida pelas grandes companhias agrícolas.

No transcurso destes acontecimentos, muitos outros intelectuais angolanos foram encarcerados e deportados, a exemplo do que aconteceu com o próprio Assis Júnior. É censurada a Liga Angolana, que havia sido inaugurada em 1913 e se encerram os periódicos africanos “O Imperial”, “o Independente”, “A Verdade” e “O Angolense”. A medida que a sociedade colonial se vai estruturando, a pequena burguesia africana que tantos intelectuais haviam constituído em seu país de origem vai consumindo-se, ao mesmo tempo que se aniquilam as estruturas e a cultura nacional angolanas.

De fato, desta forma não era possível fazer literatura. António Assis Júnior personifica o que em maior ou menor grau aconteceu com os intelectuais que se negaram a assistir de braços cruzados o despedaçamento de seu país. Com os aprisionamentos, Assis Júnior perdeu seu matrimônio, seus bens e o direito de exercer a magistratura. Teve que começar sua vida de novo partindo do zero.

E é só em 1928, depois de um exílio forçado de quatro anos, por ocasião de uma estadia em Gabela, Amboim, onde “durante muito tempo e várias vezes teve que contar sua história”, que decide reproduzir, e posteriormente publicar, primeiro nos folhetins do periódico “A Vanguarda”, em 1929, e reeditada mais tarde em 1925 em forma de livro: “O Segredo da Morta”.

Segundo disse Maria Aparecida Santilli, “Esta novela se converteria em um marco notável no encaminhamento da literatura angolana diante de sua identidade nacional”. Tendo escrito num período em que não existiam mais registros de outra obra produzida por um autor angolano, esta novela ocupa todo um vazio literário, formando uma ponte entre as duas gerações dos escritores preocupados com a revitalização angolana, as gerações que estavam anteriormente representadas por Cordeiro da Matta e posteriormente, por Castro Soromenho.

Por um lado, a obra representa um início da ficção literária no século XX, da qual Castro Soromenho é o mais ilustre representante; por outro lado, uma continuidade: a geração de 1880, encabeçada por Cordeiro da Matta, ao mesmo tempo que une como já dissemos a todo o movimento, reflete sobre a angolanidade.

Além de todas as obras mencionadas, Assis Júnior nos deixou também publicado um “Dicionário Kimbundu-Português”, cuja publicação em fascículos começou em Dezembro de 1941 e terminou, depois de 24 números, em Agosto de 1947.

Deste autor, sabemos também que preparava quando morreu, a publicação de um “Dicionário Português-Kimbundu”, a segunda edição revisada e aumentada de seu “Dicionário Kimbundu-Português, a publicação dos contos “Jinongonongo” e “N’gana Euzébio”, projetos que com sua morte não chegaram a concretizar-se.

É já ao largo dos anos 40 quando se reinicia, quase a partir do zero, a elaboração da literatura angolana. Na verdade, toda a produção literária deixada pelos intelectuais do século passado, salvo raras exceções, se perdera. É a partir daqui que Castro Sormenho começa a erigir uma obra monumental. Iniciando sua atividade literária com temas que revelam a vida das sociedades tribais não corrompidas pela presença do colonizador, publica os livros de contos Ngári, “Calenga e Rajada” e as novelas “Noite de Angústia” e “Homens sem Caminho”.

Entretanto a grande novela de Castro Sormenho é sem dúvida “Terra Morta”, publicada pela primeira vez no Brasil em 1949, obra em que o autor aborda as relações dos colonos com os africanos.

Castro Soromenho é todavia um paradigma no qual as nacionalidades biológicas e literária de um autor não tem necessariamente que coincidir. Nascido em Moçambique, viveu muitos anos em Angola e escreveu toda sua obra em Portugal. Essa multiplicidade de procedências já havia confundido muitos curiosos e a miúdo o vemos catalogado como moçambiquês, passando outras vezes por português. Raros foram os que o citavam como o angolano que era, como ele mesmo de definia: “Eu sou um escritor angolano!”.

Outro nome que deve ser citado neste período é o de Lília da Fonseca que se inicia como periodista e poetisa em “A Província de Angola”. Sua primeira novela, “Panguila”, se publicou em 1944. Nela, a autora nos dá uma imagem fiel da sociedade colonial daquela época. Lília da Fonseca foi de fato uma referência importante na literatura angolana da época. Sem dúvida, foi a sua estadia em Portugal, onde se enraizou “o marco a partir do qual ela se despojou de toda sua angolanidade, escondendo-se na vida intelectual portuguesa e não dando mais de si à literatura angolana”.

Um caminho semelhante percorreu Geraldo Bessa Vítor, na poesia. Seu livro de poemas, “Ao Som das Marimbas” revelaria um poeta observador e sensível. Ao radicar-se em Portugal, já não foi mais capaz, apesar de seu talento, de transmitir-nos o aroma de suas composições anteriores.

A partir da aparição das páginas literárias dominicais, primeiro, de “A Província de Angola” e, mais tarde, do “Diário de Luanda”, começaram a revelar-se uma série de jovens escritores de certo mérito no que diz respeito à época e ao meio no qual surgiram. No entanto, mesmo que muitos deles tivessem descrito Angola com a maior ternura, não conseguiram criar uma literatura de raiz angolana que fugisse dos modelos da literatura colonial. Só em 1948, com o surgimento do movimento cultural “Vamos Descobrir Angola”, iniciado por Viriato da Cruz e com a publicação da revista “Mensagem”, três anos mais tarde, se abre uma nova página na história da literatura angolana. Era um movimento no qual se concentravam alguns expoentes da intelectualidade nacional, que, lucidamente se volta face à realidade de então, propondo-se a reconsiderar o conjunto da realidade angolana.

Mário de Andrade nos diz: “O Movimento incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um trabalho coletivo e organizado; exortava a manifestação para o povo; solicitava o estudo das correntes culturais estrangeiras, mas com a finalidade de refletir e nacionalizar suas criações positivas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão a avidez do exotismo colonialista. Tudo isto deveria basear-se no sentido estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas”.

Havia sido lançada a semente a partir da qual começaria a germinar um grande movimento literário que só se serenaria, triunfante, em Novembro de 1975.

Notas para uma História da Literatura Angolana

Das origens até a geração de 1948

Por Licinio Menezes de Assis – Licenciado em Literatura Moderna – Critico Literário

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