Literatura Angolana: Literatura e Poder Político

por Roderick Nehone

Teríamos encontrado dificuldades metodológicas acrescidas para a definição do conceito de literatura, que aqui se pretende abordar, se o contexto em que se realiza este evento não facilitasse claramente o enquadramento da perspectiva de compreensão do significado deste termo polissémico.

Teríamos encontrado dificuldades metodológicas acrescidas para a definição do conceito de literatura, que aqui se pretende abordar, se o contexto em que se realiza este evento não facilitasse claramente o enquadramento da perspectiva de compreensão do significado deste termo polissémico. À partir da proposição ” LITERATURA e PODER POLÍTICO” me é permitido inferir que, para o nosso diálogo de hoje, poderemos convencionalmente prescindir de todas aquelas interpretações que traduzem a literatura como “tudo o que é impresso”, englobando no mesmo conceito tanto romances volumosos do género de “Guerra e Paz” de Tolstoi, como os mais minuciosos vade-mécuns de medicina.

Serão igualmente aqui preteridas, dentre outras, as definições que identificam a literatura como “a cultura geral dos povos”, “a história da civilização”, ou “o conjunto dos grandes livros que foram escritos no mundo (qualquer que seja assunto)”.

Convenhamos então que a literatura a que nos referimos é a de imaginação, ficção, criação, e engloba tanto a sua forma escrita de expressão (decorrente de uma contingência ou fatalidade histórica), como a oral, símbolo da linguagem humana de modo geral.

Procuraremos apresentar apenas premissas ou balizas que possam nortear o nosso diálogo, visto que não constitui pretensão nossa – nem ousaríamos abusar da vossa gentil indulgência – tentar fazer passar por esta breve exposição toda a galeria de escritores que com um pioneirismo invulgar deram voz e alma a literatura angolana.

Não vamos catalogar politicamente as várias gerações de escritores angolanos, nem vamos rotular as posições políticas que possam resultar da leitura das suas obras, produzidas neste ou naquele momento histórico. Em Angola assistimos à génese de uma nação, à cristalização e afirmação de um Estado, á construção – sempre difícil – e tomada de consciência da existência de uma identidade cultural na qual se revejam todos os angolanos e que nos distinga e ao mesmo tempo nos aproxime dos demais povos da África e do Mundo. Nesta perspectiva, propomo-nos fundamentalmente sublinhar que não são escassos os factos que testemunham o permanente engajamento político dos nossos artesãos da palavra.

Sendo a literatura um produto da leitura que o indivíduo faz da realidade, com todo o seu arsenal de fantasia, torna-se quase impossível evitar que nesse exercício a exploração artística do fantástico, no seu desenvolvimento e estruturação, encontre margens e pontos de apoio no raciocínio lógico que o indivíduo faz sobre o emaranhado de relação que constituem a vida da comunidade. Dizia o poeta e político Agostinho Neto que “… a vida é uma sucessão e o somatório de factos contraditórios, resolúveis ou não, segundo a sua natureza. E ela é reflectida pelo escritor de acordo com o modo como a encara. E, por isso mesmo, tem importância a situação do ponto de vista social de que se visionam os fenómenos para o escritor angolano, a interpretação da existência não deixa de estar submetida a esta regra e para o fazer, não pode evidentemente, desconhecer a realidade, sobretudo os aspectos, dramáticos dessa realidade, que constituem a sua contradição. O povo e o meio ambiente estarão sempre presente em cada pensamento, em cada palavra ou frase escrita, como a sombra coexiste com a luz, e a folha com a raiz… (…) Viver a cultura angolana significa compreender o povo tal como ele é definido. Ser um elemento do povo. Esquecer preconceitos e ultrapassar a classe. Caricaturar a pequena-burguesia, ou descrevê-la, é tão válida como exaltar o camponês ou o operário. Significa viver a vida do povo e, para os que têm preocupações literárias, saber retirar dos sentimentos, das aspirações e dos momentos da História, os elementos necessários para a sua tarefa artística…”(1)

Como vemos, os pilares da fantasia têm assento na apreensão crítica da realidade. Porém, o escritor não é uma criança e a sua maturidade revelar-se-á também no facto de, da leitura do que lhe circunda, poder fazer sem ambiguidade a triagem do que lhe será útil para a criação literária e do que lhe será proveitoso para o proselitismo político ou para a próxima campanha eleitoral.

A literatura escrita angolana é ainda bastante jovem. As suas sementes foram lançadas apenas no século XIX, mas já desde essa altura se afirma comprometida com a existência social do angolano, intervindo no processo de edificação da consciência e do sentimento nacional. Em 1845 o Governador Pedro Alexandre da Cunha funda o Boletim Oficial e nela são publicados documentos pastorais, crónicas de viagens de portugueses pelas terras de Angola, estudo e artigos doutrinários colonialista e alguns fragmentos literários em prosa e poesia. Em 1855 surge “A Aurora”, primeiro jornal de conteúdo fundamentalmente literário e recreativo. O jornal “A Civilização da África Portuguesa” editado entre 1866 e 1869; Ano em que o Governador decide proscrevê-lo catalogando de subversivo, sob a animação de António Urbano Monteiro de Castro (exímio polemista e brilhante prosador lírico e satírico) foi durante essa período um veículo activo na defesa dos interesses dos angolanos, denunciando a prepotência de Lisboa, os abusos dos Administradores, proclamando a necessidade da abolição da escravatura e promovendo um espírito positivista que reconhecia o papel progressista reservado à imprensa escrita.

A imprensa foi o primeiro espaço de intervenção através da escrita, que os angolanos encontraram para denunciar o colonialismo português. Desde a segunda metade do século XIX, em Luanda, surgem vários títulos de publicações – Carlos Everdosa regista cerca de 46 jornais – sobre questões que abrangem um universo que vai desde a polemização sobre os mais diversos assuntos, até à denúncia jornalística da insatisfação de alguns sectores da pequena burguesia com os procedimentos e actos da administração portuguesa. São reveladas nessa época claros sinais de descontentamento com a situação económica e social da colónia de Angola através de várias denúncias de corrupção e de abusos das autoridades coloniais.

Em 1881 é dado à estampa o primeiro jornal escrito por africanos, intitulado “Ecos de Angola”. Entre 1882 e 1889 surgem outras publicações, algumas das quais em quimbundo e português, merecendo menção “O Futuro de Angola” (2), “O Pharol do Povo” e “O Arauto Africano”. Estamos aqui em presença de um jornalismo que revela já uma profunda preocupação com a realidade social do país e as injustiças cometidas pelos colonialistas. É nessa altura e nesses órgãos de imprensa que são publicados os primeiros trabalhos sobre questões etnográficas, linguísticas, antropológicas e históricas. Destacam-se intelectuais como a advogado português de Coimbra, Alfredo Troni, cuja obra “Nga Muturi” é considerada precursora da toda a literatura africana de expressão portuguesa, além de constituir um importante testemunho literária da vida de Luanda daquela época, Arantes Braga, José de Fontes Pereira, Mattoso da Câmara, Cordeiro da Matta, Pedro Félix Machado, etc.

Alguns dos autores dos artigos publicados eram africanos e outros europeus. Porém, todos tinham em comum a vontade de mudança, a consciência da necessidade de se reestruturar as relações com Portugal e de dignificar a vida e as condições de existência dos nativos de Angola. Num artigo publicado no jornal “O Futuro de Angola”, José Fontes Pereira defende o seguinte: ” Que tem Angola beneficiado sob Governo português? A escravatura mais negra, a zombaria e a ignorância mais completa. Os piores de todos são os colonos, indolentes, arrogantes, com poucos cuidados e ainda menor conhecimento. Contudo, até o Governo tem feito o mais que pode para estender a humilhação e o vilipêndio sobre os filhos desta terra, que possuem, todavia, as qualificações necessárias, para promoção. Que civilizadores e que portugueses! (…) Os filhos da colónia que possuem as qualificações necessárias, estão a ser regularmente privadas de emprego, em benefício de ratazanas que nos mandam de Portugal. Não empregam as suas inteligências para civilizar um povo, pelo qual não têm respeito algum, e isto prova-se por aquele ditado vulgar – “com preto e mulato nada de contrato”. Os filhos desta terra não podem ter confiança alguma na boa fé do bando colonialista português cujos membros são apenas crocodilos a chorar para engordar as suas vítimas. Conhecemo-los bem. Fora com eles!”(3)

Esta denúncia revela já o nível de consciência política da intelectualidade da época. Fontes Pereira, foi jornalista e advogado. De 1882 a 1895 colaborou no jornal ” O Pharol do Povo”, redactando artigos que trouxeram à ribalta a questão do nacionalismo angolano. Divulgou amplamente a necessidade de se criar uma literatura própria, angolana e foi pioneiro preclaro do nacionalismo como ideia política sustentada numa cultura genuína.

Torna-se evidente que as práticas intoleráveis do colonialismo e a repressão tiveram como resposta da sociedade civil a criação de movimentos culturais constituído por pessoas que partilhavam da necessidade de mudança daquele status quo. Estes movimentos culturais sedimentaram as bases para o surgimento de verdadeiros movimentos políticos, de cuja inspiração surgiu em 1956, em pleno século XX, O MPLA, tendo-se convertido num movimento de libertação nacional, devidamente estruturado, com capacidade de organizar guerrilhas com a finalidade expressa de derrubar o colonialismo e tomar o poder político.

Entretanto, o século XX iniciou com um episódio à nível da imprensa que veio consolidar a atitude de resistência e o sentimento de rejeição da discriminação racial e do tratamento brutal de que eram alvo os nativos de Angola. Em 1901, foi publicado na Gazeta de Loanda um artigo denominado “Contra a lei, pela grei”, no qual um colonialista português propõe a substituição das penas de prisão aplicada aos negros infractores, por castigos corporais e manifesta-se contra a condenação dos europeus que ofendem os “indígenas”, o que na visão de tal articulista constituía um atentado à soberania da pátria lusitana porque tinha como base uma hipotética igualdade entre as raças. De igual modo, o autor propõe a criação de uma justiça para brancos e outros para negros, como forma de se evitar distúrbios no futuro da colónia portuguesa.

Como forma de manifestar a sua indignação pela publicação daquele “libelo” racista um grupo de intelectuais reuniu-se e decidiu publicar uma série de textos de temática diversa, além de oito artigos que de modo veemente refutavam os absurdos argumentos do colonialista. A obra foi denominada “A voz de Angola calmada no deserto” e logo de início, sob a epígrafe “Advertência”, fazendo uso de uma ironia perspicaz e revelando um domínio inexcedível da língua portuguesa começam por desqualificar o articulista, da seguinte maneira:

“Este opúsculo, em que colaboram naturais de Angola, em linguagem tanto quanto a cada uma permite o diminutíssimo grau de educação literária, não é resposta à Gazeta de Loanda, único jornal que se publica na localidade, nem é desafronta, porque as inexactidões espalhadas ao público por essa folha contra os naturais desautorizaram o seu autor.

Factos repetidos, confirmados, presenciados pelo mundo inteiro, não podem ser destruídos por faquin qualquer que as sarjetas de Portugal despejaram para este cantinho do mundo. Os primeiros oito artigos que representam a torrente de opinião contra as apreciações banais do pirilampo, que corisca no espaço escuro das multidões charras.

É a triaga contra a baba corrosiva do verme, o mais que se segue, são artigos, discursos, relatórios, etc., extraídos de muitos trabalhos literários, publicados em diversas épocas sobre o assunto”.(4)

Este incidente testemunha o elevado nível de fricção e de contradições causadas pela política de exclusão e discriminação praticadas pelas autoridades coloniais.

Face a diversidade étnica e linguística dos povos que então habitavam o espaço geográfico ocupado pelos colonialistas portuguesa, à violência e velocidade que estes imprimiram ao próprio processo de colonização, provocando sensíveis fracturas sociais, económicas, políticas e religiosas, coube aos escritores e jornalistas, enquanto representantes da elite intelectual da época fazer através da palavra literária a ponte que salvaguardasse a identidade de destinos e a noção de pertença a uma mesma geografia e a uma mesma comunidade.

Os longos anos de convivência num mesmo espaço geográfico cujas distâncias foram encurtadas pelo colonizador, o intercâmbio comercial e o cruzamento interétnico, a subjugação a um mesmo domínio militar e político, a redução a um estatuto social inferior, a partilha do trabalho e das demais vicissitudes da vida, estabelecerem o caldo de cultivo do sentimento de nação, entidade que resultaria da simbiose das tradições, hábitos, costumes e idiossincrasias dos vários povos que habitavam num mesmo espaço político e jurídico, resultado da partilha da Conferência de Berlim de 1885. “A história da nossa literatura – sintetiza uma passagem da declaração de proclamação da União do Escritores Angolanos, a 10 Dezembro de 1975 – é testemunho de gerações de escritores que souberam, na sua época, dinamizar o processo da nossa libertação exprimindo os anseios do nosso povo, particularmente o das sua camadas mais exploradas. A literatura angolana escrita surge assim não apenas como simples necessidade estética, mas como uma arma de combate pela afirmação do homem angolano.”

Nesta mesma óptica, e apenas para corroborar a síntese anterior, quase um século antes Cordeiro da Matta subscrevera as preocupações manifestas pelo missionário suíço Héli Chatelain, autor de obras como “Folk-tales of Angola” (recolha de contos orais publicada em 1894 e traduzida para o português em 1964) relativamente à necessidade de preservação e valorização do património cultural angolano, quando no seu livro intitulado “Philosophia popular de provérbios angolenses” transcreve literalmente que “…É preciso que os próprios filhos do país, cheios do santo zelo pelas cousas pátrias desenvolvam a literatura nascente, e como a união faz a força, é mister que se reunam os poucos que sentem na alma o fogo sagrado, é mister que este fogo queime e consuma as mesquinhas rivalidades e vaidades pessoais, de modo que cada um se regozije da prosperidade do colega.” (5)

A geração de 1900 herda o legado dos seus predecessores e desenvolve as formas de luta cívica. Homens da estirpe de Pedro da Paixão Franco, Francisco Castelbranco e Lorenço do Carmo Ferreira, por citar apenas alguns, pontificam a intelectualidade da época com reivindicações que fazem ênfase na necessidade de se massificar a instrução pública. Uma colecção de ensaios literários, etnográficos e históricos, poesia e contos, bem como traduções de escritores estrangeiros dentre os quais o francês Victor Hugo, intitulada “Luz e Crença”, é publicada em 1902 sob a direcção de Paixão Franco.

Não nos parece acaso algum que a divisa da referida publicação não fosse politicamente ingénua: “A Ordem pela Liberdade, a Liberdade pela Ordem”. No seu segundo número, apesar de se continuar a utilizar com maior frequência o termo “autonomia”, se começa já a recorrer aqui e acolá à palavra ” independência” e podemos encontrar tanto a poesia lírica e sentimental de Jorge Rosa como a poesia social e contestatária de Lourenço do Carmo Ferreira, da qual destacamos apenas algumas estrofes do poema intitulado “Sonho (Aos angolanos- Meus patrícios):

“(…) E vi, sonho sublime!- em célico clarão!

ressurgir Angola em meio da escuridão!…

Oh! Fontes, ao clarão d’uma aurora virginal,

vi realizar-se o teu íntimo ideal!

Vi então Angola das vascas d’agonia

erguer-se esplendorosa à luz de um novo dia.

Vi envolta em horrida, infecta podridão!…

a vilania, o crime, a vil escravidão

Vergonhosa e corrida a pérfida canalha.

Que volvia à condição servil da gentalha.

Reinava a harmonia; o Sol da Igualdade

Já de luz innundava a livre humanidade.

E minh’ alma sorria e sentia em meu peito

o bem estar immenso do amôr satisfeito.

E que bello deve ser para o peito angolano

ver vingar o Direito e a queda do tyranno?

Que bello é pois viver n’uma família immensa

guiados pelo Fé, unidos pela Crença?!…

Tudo isto antevia no sonho fabuloso

envolto num clarão, ethereo, luminoso

…………………………………………………….. Porém, quando accordei, a negra realidade

mostrou-se bem crua:

nulla era a Igualdade

utopia o Direito e zero a liberdade!…

Loanda, 17 de Setembro de 1902″(6)

Outros factos importantes ocorrido nessa mesma época foram a fundação do Liceu Salvador Correia, exactamente em 1919, instituição que mais tarde jogará um importante papel na formação das elites angolanas durante o passado século XX, e a proclamação da primeira Associação Literária Angolana, no bairro das Ingombotas.

Sobre a obra de Paixão Franco, intitulada “História de uma traição”(7), Mário António, citado por Fernando Rama, diz o seguinte: ” Vemos la tendencia del autor para los hechos de la historia reciente, principalmente los ligados a la luchas por las liberdades y, principalmente, por la promocion de las clases más oprimidas. Los acontecimientos da la lucha obrera en Europa son referidos varis veces. A pesar de que Paixão Franco declare que su aspiración era solamente la libertad, independietemente del régimen que la instituyera, lo cierto es que su simpatía parece ir hacia las doctrinas socialistas, dada su enfática referencia al pueblo, constantemente.”

De 1912 até princípios dos anos quarenta assistimos a uma espécie de hibernação destas manifestações literárias nacionalistas, devido a toda um conjunto de factores de natureza objectiva que exigirão a reformulação das formas e métodos de luta. O poder colonial consolida a sua penetração e dominação em quase todo o território nacional. O empresariado português começa a dominar a imprensa, com a fundação dos jornais ” O Independente” e ” Província de Angola”, impondo ambos linhas editoriais que se pautavam por um rigorosos maniqueísmo lusitano na apreensão da realidade angolana e subsequentemente na produção literária que fosse divulgada. Com o reformismo do Governador Norton de Mattos foi igualmente promovida a alienação cultural, com a instituição de prémios de literatura colonial e o surgimento de correntes de pensamento que se definiam como luso-tropicalista. O golpe de Estado de Salazar, em 1926, veio instalar uma ditadura que intensificou a perseguição de toda actividade Cultural genuinamente angolana, obrigando os nacionalistas a ter que criar e divulgar os seus trabalhos apenas na clandestinidade.

A década de quarenta do século passado é referenciado como o período durante o qual se revela o moderno nacionalismo angolano. Alimentados pelos escritores e a postura firme e clarividente dos seus predecessores, os intelectuais de quarenta colocaram na sua agenda, sob novos moldes, questões tais como a luta pela valorização das línguas nacionais e do património cultural dos povos de Angola, o destaque e enquadramento da natureza singular e tropical da terra angolana e seus abundantes recursos, como elementos de identificação do seu habitat e da sua gente, a divulgação do negro e a valorização da tradição oral.

” Vamos descobrir Angola”, foi a palavra de ordem deste movimento que iria inaugurar uma nova etapa na luta contra a dominação colonial. Segundo Mário de Andrade, este movimente incitava os jovens intelectuais a descobrir Angola em todos os seus aspectos, através de uma trabalho colectivo e organizado, encorajava o estudo das modernas correntes literárias e culturais estrangeiras, mas com a finalidade de repensarem e nacionalizarem as suas criações válidas, exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana sem que se fizesse qualquer tipo de concessão à sede de exotismo colonialista. Em síntese, toda a criação literária deveria basear-se no sentido estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.(8)

A “reconquista” da terra mãe, através da obtenção de um conhecimento cada vez mais profundo sobre as suas riquezas e sobre as várias etnias que a habitavam, num contexto em que já havia ocorrido a Revolução de Outubro e em que a Segunda Guerra Mundial – da qual a África não ficara incólume -dividira o mundo em dois grandes blocos políticos, foi a mensagem catalizadora de um movimento nacionalistas que anos mais tarde daria lugar, como já dissemos, a níveis superiores de organização política em prol da luta pela independência de Angola.

Pertencem a esta geração escritores e ao mesmo tempo político como Viriato da Cruz, António Jacinto e Agostinho Neto, os quais através das suas obras fertilizam a semente de uma literatura que lê o sentir do homem angolano, desperta-o para a compreensão do mais profundo querer do povo, resgata a sua identidade e amor próprio e mobiliza-o inevitavelmente para que se erga e converta o seu sonho em realidade, não importa os obstáculos a vencer. Estes homens foram capazes não apenas de desenvolver no plano estético as suas aspirações ideológicas, definido padrões que viriam sentar as balizas da moderna literatura angolana, como também elaboraram esquemas e programas concretos para a organização política e militar do povo angolano para pegarem em armas e lutar pelas própria libertação.

Assistimos desde então à consagração da temática da luta social como cerne da produção literária. Libertação política social e nacional, numa só palavra, são ideias que começam a ser veiculadas na literatura sem quaisquer ambiguidades e cujo tratamento pode assumir diversas formas que vão desde a publicação de reflexões antropológicas sobre a existência e as vicissitudes da vida do homem angolano, como também de poemas cujos versos manifestam enérgica revolta contra a opressão colonial, contos ou poemas que retractam a vivência dos muceques da cidade de Luanda, ou ainda que ventilam a adesão às várias correntes pan-africanistas.

Os vários historiadores ou estudiosos da Literatura angolanas seccionam este período que vai da década de quarenta até 1975, Ano em que se proclama a independência , em vários grupos de escritores, ou gerações. Fala-se então da ” Geração da Mensagem”( 1948 a 1956), onde se destacam Alexandre Dáskalos, Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, Alda Lara, da “Geração da Guerrilha” ( 1957 a 1969), da qual fazem parte Costa Andrade, Arnaldo Santos, Manuel Lima, Henrique Guerra, Ernesto Lara Filho, Mário Guerra, Henrique Abranches, João Maria Vila Nova, entre outros e da ” Geração de 70″, com Jofre Rocha, Arlindo Barbeitos, David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho, Manuel Rui Monteiro, etc.,(9).

Independentemente de qualquer enquadramento que se faça dos escritores que se revelaram neste período, nesta ou naquela” Geração”, importa fundamentalmente dizer que o denominador que nos perece comum e útil para o nosso estudo estriba no facto de que todos estiveram de uma ou doutra forma engajados na luta pela independência de Angola.

Como é possível verificar, à semelhança do que aconteceu com outros povos do mundo, foram vários e de diversa índole os condicionalismos históricos que propiciaram o despontar da nossa literatura, bem como os que lhe deram forma e conteúdo. O seu cariz contestatário reflectiu o contexto político e social de repressão colonial em que se anunciou, no qual a condução da luta pela emancipação social não seria possível sem a aquisição dos conhecimentos que ao longo da história da Humanidade preparam os homens para semelhantes batalhas. Por sua vez, este tirocínio intelectual fez dos escritores, quase sempre políticos também, os mais avançados intérpretes da vida do povo, os seus melhores cantores através das suas obras em poesia ou prosa, os mais qualificados agentes para, sob a fachada da ficção, despertar os seus concidadãos para a gesta libertadora.

A revolução venceu. O colonialismo, na veste formal de modo de dominação política e jurídica, desapareceu. O poder político está nas mãos de nacionais. Que papel caberá aos escritores e que conteúdo reservar à Literatura, no contexto de um Estado que se pretende Democrático e de Direito?

Chamou-me a atenção, pela dimensão da sua mensagem, um excerto de L.A ROCHELLE em que dizia que “Apenas deve haver um breve instante, uma vez por século, cinco minutos por século, em que um intelectual está de acordo com um movimento político: no primeiro dia de uma Revolução…”

Há quem veja no escritore, no intelectual, a silhueta do contestatário perpétuo, esquecendo-se, por ingenuidade ou deliberação, que este homem não é politicamente insosso. Para estes, o distanciamento com respeito a qualquer poder estabelecido tem sido geralmente apreciado como a imagem de marca do escritor. Qualquer aproximação, participação, ou assumpção pública de relações funcionais ou ideológicas com o poder é susceptível de envolver numa auréola de suspeita a sua postura, as suas declarações e até mesmo questionar a sua probidade.

Acaso a relação da literatura com o Poder Político tem de se exprimir necessária e fatalmente nos termos da conflitualidade e da permanente oposição? Será a contestação uma atitude que defina o escritor, até mesmo quando como cidadão subscreva livremente o projecto político de quem governe? Que lugar sobraria para a liberdade de coerência, de consciência e de pensamento, quando pelo simples mas bem-aventurado facto do seu Partido ter chegado ao poder o escritor tivesse que forçosamente optar pela dissidência, para se entrincheirar na oposição?

Não nos parece herético afirmar que o escritor, antes de sê-lo, é cidadão. E na qualidade de cidadão assistem-lhe os mesmos direitos cívicos de que se valem tanto o mais indiferente dos ascetas, como o mais mediático dos políticos. Nesta perspectiva, existirá então um arco-íres mais ou menos amplo de posições ou atitudes políticas que o escritor poderá livremente escolher e assumir, em função das suas convicções ideológicas, do seu olfacto mais ou menos pragmático, ou ainda do seu maior ou menor sentido de oportunidade. É o livre direito à opção nos marcos da lei que entra irremediavelmente em jogo e não devemos deliberadamente colocá-lo de parte, para de modo inadvertido espartilharmos a liberdade do escritor, apenas porque – em determinado momento do juízo que fizemos sobre a dimensão da sua intervenção social – ficamos com a ilusória sensação de que estávamos em presença de uma “rara espécie humana”, ” separador das águas”, ” criador de consensos”, ” juiz verdadeiramente neutro”, enfim, “um propagador da verdade e apenas da verdade”, através da maravilhosa ficção da sua obra, ou dos patrióticos apelos dos seus versos.

Nada mais distante da verdade do que esta quimera. O escritor é um homem que vive a sua época e, como tal, não pode furtar-se de assumir as posições que melhor traduzem o lugar social que ocupa, ou a motivação política ou ideológica que imprima à sua própria existência, isto é, o sentido que outorga à sua vida.

Entendemos que a fidelidade do intelectual a uma determinada formação política ou social não deve significar a castração da sua liberdade para analisar de modo independente (isto é, de acordo com a sua maior ou menor capacidade de juízo) a realidade que lhe rodeia.

O advento da independência fez com que fossem colocadas novas questões na agenda social e política do homem angolano. Que nova Angola construir? Que tipo de economia edificar? Como distribuir equitativamente a riqueza nacional e de que modo conceder oportunidades aos cidadãos para que estes se desenvolvam, do ponto de vista intelectual, e satisfaçam as suas necessidades materiais e espirituais? Enfim, que tipo de sociedade será, do ponto de vista ideal, a mais justa e a que melhor traduza o projecto de nação idealizado durante a luta de libertação? Todas estas questões afiguram-se-nos demasiado complexas para que se pretenda congregar à sua volta respostas unânimes

Os acertos e desacertos registados no processo de edificação do Estado angolano no pós-independência causaram encantos e desencantos em todos os angolanos, sem distinção de raça, de credo, de profissão, ou de ocupação. A guerra que se prolongou até Abril do presente Ano, as alianças político- ideológicas das forças políticas em confronto, a agressão militar externa, a presença militar estrangeira, a ingerência político-diplomática e as pressões económicas e financeiras, os equívocos da governação, as vicissitudes pelas que passou o exercício pelos cidadãos dos seus direitos cívicos ao longo destes 27 anos de independência, constituiem factores que não apenas contribuíram de modo sinérgico para a mudança da realidade em Angola, como também e em consequência, induziram as mais diversas leituras literárias plasmada nas centenas de obras em prosa ou poesia publicadas neste período.

O romance ” A Geração da Utopia”, de Pepetela; constitui, segundo uma nota da Editora(10), uma ” retracto desapiedado dos angolanos a quem ficou a dever-se a epopeia das lutas pela independência e da guerra civil que logo lhe sucedeu, das glórias e das sombras que marcam esses longos anos de permanente conflito e do descontentamento e da indiferença que insidiosamente se tornou estigma de tantos desses homens e mulher que fizeram, apesar de tudo, um país novo.”

Num outro romance intitulado ” Os anões e os Mendigos”( 1984), o autor, Manuel dos Santos Lima, diz-nos à guisa de introdução que ” no Ano 2000,oito adultos sobre dez viverão no Terceiro Mundo e entre eles haverá seiscentos milhões de pobres absolutos. Os países ricos estarão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Há uma conspiração contra o Terceiro Mundo e dela são coniventes os seus próprios governantes. O nosso século é um século de revoluções sangrentas feitas em nome da liberdade e da democracia e no entanto jamais na história da humanidade se foi tão cruel para o Homem, jamais as opressões foram tão massivas e sofisticadas. Ora nenhuma revolução pode ganhar perdendo de vista o homem como indivíduo. Tais são as preocupações que me incitaram a escrever “Os Anões e os Mendigos”, que situo algures num país africano, jovem, exportador de matérias primas e esbanjador de matéria cinzenta, em que os cidadãos, apesar de independentes, continuam anões sociais e os seus dirigentes mendigos dos interesses estrangeiros que os sustentam no poder.”(11)

Outras obras destes e doutros autores como ” Crónico de um Mujimbo”, de Manuel Rui Monteiro, “Patriotas”, de Sousa Jamba, ” Filhos da Pátria” de João Melo, ” Entre a morte e a Luz”, de Aníbal Simões ( Cikakata Mbalundu), ” Momento de aqui”, de Ondjaki, todos estes apenas alguns exemplos de obras em prosa, reflectem a contínua apreensão crítica da realidade por partes dos escritores, os seus diferentes posicionamentos políticos e ideológicos, o eventual pessimismo ou optimismo no olhar que reservam para o presente e o futuro do país, bem como a sua conformidade ou inconformidade relativamente a determinado “estados de coisas” conjuntural.

Faça pois o escritor uso pleno da sua liberdade. Porém, não ignore que esta não existe em abstracto e a liberdade em concreto tem um texto e um contexto pontualmente delimitados no tempo e no espaço. Tudo o que resta cairá, certamente, no sempiterno saco das utopias, de cuja existência apercebemo-nos apenas quando chegamos ao ocaso com a triste sensação de muito pouco termos feito pela nossa própria emancipação.

Para que a literatura não se perca no cosmético deverá pulsar as preocupações da sociedade em que se exprime. O escritor, ainda que político de alma, fará o seu singular retracto da sociedade utilizando uma linguagem diferente. Julgamos que escrever, do ponto de vista literário, em prol de uma causa política qualquer não significa necessariamente escrever de modo propagandístico sobre essa causa. É possível fazer a defesa dos ideais políticos que partilhamos sem enveredar pela simbologia panfletária ou de cartilha. É, do mesmo modo, exequível batalhar pelo nosso ideal de uma vida melhor recriando no poema, no conto, na novela, no romance ou no teatro, os belos contornos que daríamos a essa existências ou os traços lúgubres da realidade que rejeitamos.

A Literatura constitui um retracto sui géneris da vida e utiliza categorias e instrumentos para a apreciação do seu desenrolar que funcionam e evidenciam-se úteis ao homem e á sociedade, unicamente quando não se lhes confunde com as ferramentas da análise política. Não lhe sendo possível abdicar da sua condição de animal político sem bestializar-se, o escritor apenas vingará se no seu trabalho conseguir defender a sua visão do mundo sem fazer concessões gratuitas à política.

Mui à propósito subscrevemos neste momento uma passagem de STENDHAL quando dizia que “A política é uma pedra atada ao pescoço da literatura e que em menos de seis meses a submerge. A política, no meio dos interesses da imaginação, é um tiro no meio de um concerto …”

Acreditamos que se possa inverter os termos desta relação se prestarmos atenção á necessário compartimentação que deve existir no exercícios dos diversos papéis que a vida social nos impõe. Que não se confundam o escritor e o político. Estas duas ocupação sociais podem aparecer fundidas num mesmo homem, mas nunca se permite que se projectem confusas.

Que brilhe o escritor no cenário literário e reluza também o político no apogeu do seu proselitismo eleitoral. Contudo, não deixemos que nesta coexistência a literatura seja afogada pela Política. Tornemos os nossos debates literários cada vez mais académicos e, quando a nossa sede por participar activamente na vida da polis assim o ditar, encontremos os foros apropriados para que uma vez encostada a pena se concede asas ao voto.

Moscovo, Setembro de 2002 Roderick Nehone Notas Bibliográfica 1)Agostinho Neto, “… Ainda o meu sonho” ( Discursos sobre a Cultura Nacional), p..25-26, UEA, 1985.

2) Carlos Everdosa, ” Roteiro da Literatura Angolana”, 3ª Ed, Luanda, UEA, 1985. 3)- Idem 4)- Rita Chaves, “A formação do Romance Angolano”, p.41, Colecção Vai atlântica, São Paulo, 1999. 5)- Carlos Everdosa, op. Cit. 6)- Poesia de Angola, Antologia, p. 81-82, NEA, Luanda, Fevereiro de 1977 7)- Fernando Rama e Beatriz Sienra, “ANGOLA, Cultura y Liberación”, p.33, EPU, Uruguai 1990 8)- Idem, p.36 9)- Xosé Lois Garcia, “Poemas a la madre África” (Antología de la Poesía angolana del siglo XX), Ediciós de Castro, 1999 10- Pepetela, “A Geração da Utopia”, Colecção Letras Angolanas 1, Editorial Nzila , Luanda 1999 11)- Manuel dos Santos Lima, “Os Anões e os Mendigos”, Edições Afrontamento, Porto 1984

Fonte: União dos Escritores

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