Novas traduções de James Baldwin mostram a potência da visão crítica do autor

Novas edições da obra do ativista negro americano mostram a atualidade da visão crítica do escritor, como aponta o professor Anelito de Oliveira neste ensaio inédito

Por  Anelito de Oliveira Do Uai

Autor de peças teatrais, ensaios e romances, James Baldwin expõe uma sociedade fraturada, em que a individualidade se sobrepõe às relações afetivas e coletivas (foto: Allan Warren/Wikicommons)

Dos anos 1960, quando chegaram as primeiras traduções de romances do afro-americano James Baldwin (1924-1987) ao Brasil, até agora, quando novas traduções finalmente estão chegando, passaram-se mais de 50 anos. A publicação de O quarto de Giovanni (1956) e Terra estranha (1962) quebra um longo silêncio editorial.

As últimas edições brasileiras de livros do autor saíram nos anos 1980, num tempo tão conflituoso como os anos 1960 e este que se abriu de 2013 para cá, com o ressurgimento de conservadorismos horrendos. Isso nos leva a pensar em Baldwin, de cara, como uma espécie de dispositivo crítico muito especial, um mecanismo estético-literário para a operacionalização da crise brasileira atual a partir de uma perspectiva estranha, não familiar, anticonvencional, black.

Cabe ressaltar ainda, a propósito desse novo projeto editorial da editora paulistana, que as novas traduções vêm acompanhadas de prefácios e posfácios valiosos que indiciam o Baldwin que se pretende construir, especialmente, para leitores de um novo tempo. São textos que respondem, a partir de lugares de saberes diversos – literário, sociológico, antropológico –, por que Baldwin agora.

O escritor e jornalista irlandês Colm Tóibín, autor de Amor em tempos sombrios, coletânea de ensaios que explora a relação entre literatura e homossexualidade do século 19 à atualidade, bem como de vários romances já publicados no Brasil, assina a introdução d’O quarto de Giovanni, que também traz posfácios do antropólogo Hélio Menezes e do sociólogo Márcio Macedo.

Terra estranha, além de reproduzir o texto de Macedo, um sintético perfil de Baldwin, traz um belo ensaio de Silviano Santiago, que tantos pontos de contato tem com o romancista negro, a começar pela experiência das sociedades parisiense e novaiorquina nos anos 1960 e 1970, e um texto sucinto, mas muito instigante de Alex Ratts, antropólogo ligado à Universidade Federal de Goiás.

Ao lado de Ralph Ellison, autor do Homem invisível (1948), e Richard Wright, autor de Filho nativo (1940), James Baldwin compõe o trio de romancistas negros que intensifica o processo de exploração da vida social estadunidense, objetivando, em clave realista, as mazelas do racismo.

Trata-se de processo que tem seu marco inicial, como se sabe, no ensaio As almas do povo negro (1903), de W. E. B. Du Bois (1868-1963), para o qual contribuiu decisivamente nos anos 1920, no Norte dos EUA, o movimento conhecido como “Harlem Renaissance” (Renascença do Harlem), com poetas como Langston Hughes a reivindicar o reconhecimento do seu estatuto de americano, apesar de negro.

Baldwin, antes de ser o “Henry James do Harlem”, como foi apelidado por muitos críticos, isto é, um caso de prosa literária que prima pelo tom analítico, pela desvelação da vida mental, é o elo inquietante numa corrente negra revolucionária que tem uma relação tensa com o mundo.

BLACK 
O documentário Eu não sou seu negro (2017), do haitiano Raoul Peck, dá a medida dessa tensão ao revelar o imbricamento entre vida e obra, entre história pessoal e história social em Baldwin.

A pretexto de rememorar uma determinada casa (Remember this house é o título do manuscrito inacabado de 1979 do autor que estrutura o documentário), a morada de três grandes líderes negros assassinados num período de cinco anos, seus amigos, Baldwin relata-se, revela-se em sua integridade ética, moral, estética, cultural e política

Os lideres assassinados – Medgar Evers (1963), Malcom X (1965) e Martin Luther King Jr. (1968) – não são meros objetos da narrativa de Baldwin, mas sujeitos de uma história em processo, aberta, ao lado do mesmo Baldwin, uma história que o escritor deseja compreender como parte de uma luta dolorosa pelo reconhecimento do negro como ser humano.

Indicado ao Oscar em 2017, Eu não sou seu negro recolocou James Baldwin na ordem do dia, estimulando, evidentemente, as reedições dos seus livros. Esse estímulo só aumentará com a indicação para a mesma premiação em 2019 de Se a Rua Beale falasse, dirigido por Barry Jenkins e baseado no romance homônimo de Baldwin de 1974. O livro, já em pré-venda, será lançado pela Companhia das Letras em janeiro.

O documentário Eu não sou seu negro, narrado pelo ator Samuel L. Jackson, apresenta, de modo sintético, elementos significativos do pensamento social afro-americano praticado por Bal

A referência nuclear desse pensamento é a negatividade: não sou seu negro significa, num primeiro nível, a negação do preceito racista, que remonta à escravatura, segundo o qual o negro é propriedade de outrem, tem dono, é uma coisa. E significa, num segundo nível, a negação de que o homem, no sentido da espécie, negro ou negra, restrinja-se à condição étnico-racial, seja apenas uma pele escura e certos valores culturais.

Baldwin, como revela uma entrevista no documentário, percebia-se como um homem, com toda a complexidade constitutiva dessa dimensão conceitual aguçada por um Nietzsche ou um Foucault, e acusava a sociedade estadunidense de ter inventado a categoria black como parte de uma dinâmica de dominação, donde resultara toda uma discórdia social.

Em plenos anos 1960, um século depois da abolição da escravatura nos EUA, que se deu precisamente em 1º de janeiro de 1863, a superação dessa discórdia constituía ainda um grande desafio para essa sociedade, já que significava superar o racismo contra negros, algo que pressupunha, por sua vez, reconhecê-los como titulares dos mesmos direitos civis desfrutados pelos brancos.

A aparente impossibilidade de efetivação desse processo é o que o escritor e ativista testemunha ao retornar aos EUA em 1957 depois de um tempo vivendo na França, para onde se mudou em 1948, diante dos tantos embates entre brancos e negros.

HARLEM 
Nascido e crescido no Harlem, pobre, negro e homossexual, filho de pais separados, sacrificado por um padrasto pastor carrasco, arrimo de família ainda no início da juventude, vinculado “forçosamente” ao protestantismo, Baldwin percebe a vida social de forma, evidentemente, muito complexa, sem obviedades ingênuas.

O racismo não constitui, para ele, uma problemática isolada, autossuficiente, mas uma questão relacionada a classe social, economia, gênero, política, sexualidade, cultura etc.

Essa percepção abrangente explica, sobretudo, o impacto atual da obra de Baldwin sobre feministas em atividade nos EUA, como bell hooks (pseudônimo da estadunidense Gloria Jean Watkins, inspirado em sua bisavó materna, que faz questão de grafá-lo em minúsculas) e Judith Butler, interessadas em superar dicotomias contraproducentes.

Também explica a dificuldade de compreensão dessa obra no calor da hora, ainda nos anos 1960, por lideranças do movimento social negro estadunidense, como Eldridge Cleaver, dos Panteras Negras, que, no seu Alma no exílio (1968), lidando com uma perspectiva marxista vulgar, causalista, chega a acusar o escritor de odiar os negros e amar os brancos.

A leitura superficial de O quarto de Giovanni pode levar a conclusões apressadas, simplificadoras, sobre a perspectiva criadora de Baldwin, especialmente a respeito da dimensão ideológica do autor, o que só atesta o quão aporética é a relação entre estética, história e ideologia.

Trata-se do segundo romance de quem tinha estreado em 1953 com uma narrativa calcada em sua experiência de vida, Go tell it on the mountain (Vá contar isso na montanha), título tomado a um célebre gospel.

Entre esses dois trabalhos, Baldwin se revelou também autor de teatro, com The amen corner (A sala de oração, 1954), e extraordinário ensaísta, com Notes of a native son (Observações de um filho nativo, 1955), em que reúne suas reflexões sobre questões raciais, estéticas e políticas.

SUBJETIVIDADE 
O quarto de Giovanni, ao abordar um relacionamento conturbado entre dois homens, parece um romance gay, interessado especialmente em homossexualismo, mas é, desde a localização no espaço europeu, uma construção que tenta ir além de qualquer rótulo.

Desde os primeiros momentos, a narrativa aguça nosso interesse pela subjetividade, desvia-nos da exterioridade em direção à interioridade, mas de um modo diferente daquele do romance introspectivo tout court, praticado por uma Virginia Woolf ou mesmo, no Brasil, Clarice Lispector.

David, um americano que está morando na França, diz coisas como “nada mais insuportável, uma vez obtido, que a liberdade”, “a dificuldade é dizer sim à vida” e “sou multiforme demais para merecer confiança”. Intuímos que algo de muito grave aconteceu com o David personagem, objeto da narrativa, mas não se trata de algo que possa ser dito de modo direto, claro, objetivo, por David narrador.

Pode-se falar numa opacidade estruturante da pequena obra-prima que é O quarto de Giovanni: o narrador não tem domínio absoluto sobre a narrativa, sobre o experienciado; o quarto é, por isso mesmo, metáfora de uma instância fechada, obscura, de uma intimidade resistente à revelação que, no final das contas, vem a ser o próprio sujeito, o modo como sua vida se efetiva.

Saberemos ao longo do romance que o desconcerto psicológico de David tem a ver com Giovanni, um garçom italiano que foi condenado à morte em virtude do assassinato do seu patrão, Guillaume. O gesto de Giovanni, imigrante pobre, é estimulado pela exploração sexual a que se vê submetido por Guillaume, para quem volta a trabalhar – tinha sido por este demitido e estava na miséria – depois do fim do relacionamento com David.

O relacionamento, que tinha se iniciado no estabelecimento de Guillaume, um reduto gay, e se intensificado com a mudança de David para o quarto bagunçado onde Giovanni morava, chega ao fim com o retorno da noiva de David, Hella, também estadunidense, que, buscando encontrar-se, estava em viagem pela Espanha.

David, com o proverbial pragmatismo estadunidense, decide dar continuidade ao relacionamento com Hella, mas Giovanni, marcado pelo nietzschiano amor fati, não se conforma e mergulha no desespero.

O enredo idílico, com uma notável força lírica, acaba por constituir um estratagema altamente eficaz para que Baldwin coloque o american way of life em questão, proceda ao desmascaramento ideológico de um modo de ser social perverso representado por David.

Confrontando o ideal de pureza das elites estadunidenses, Giovanni, o jovem egresso do interior da Itália, onde lidava com agricultura, diz, no momento em que está sendo abandonado por David: “Você quer abandonar o Giovanni porque ele faz você feder. Quer desprezar o Giovanni porque ele não tem medo do fedor do amor. Quer matar o Giovanni em nome de todas as suas moralidadezinhas. E você – você é imoral”.

Hella, por sua vez, quando descobre a bissexualidade de David e o seu caso com Giovanni, transforma questões pessoais em tragédia intercontinental: “Os americanos nunca deviam vir à Europa (…) porque nunca mais vão ser felizes. Pra que é que serve um americano que não é feliz? A felicidade era a única coisa que tínhamos”.

ÉTICA 
A economia simbólica do segundo romance de Baldwin conduz-nos à compreensão de que Giovanni, Hella e, sobretudo, o próprio David, são vítimas do modo de ser social característico das elites brancas estadunidenses, do cinismo, da mentira.

O infortúnio dos três teria sido evitado se David não tivesse se negado sexualmente, tivesse assumido sua sexualidade diferente, homonormativa, já no início da vida adulta. Ele diz, destilando sua angústia: “Arrependo-me agora – como se adiantasse alguma coisa – de uma mentira que contei a Giovanni, sem nunca ter conseguido fazê-lo acreditar nela: que eu nunca havia feito amor com um rapaz antes. Eu já havia feito, sim”.

A coerência ética, entre os planos do ser e da ação, do que se pensa e do que se faz, não é compatível, para Baldwin, com a mentira sobre a sexualidade, com a negação da identidade sexual – é o que nos diz o sofrimento de David.

Se a vida privada, questões de ordem interior, tudo aquilo que perturba a mente dos indivíduos, ocupa o primeiro plano n’O quarto de Giovanni, a vida pública, questões de ordem exterior, ocupa o primeiro plano de Terra estranha, sem que isso signifique uma separação real entre essas duas dimensões, que estas se sustentem isoladamente.

O ápice da técnica narrativa de Baldwin, caracterizada pelo famigerado stream of consciouness (fluxo de consciência) vulgarizado por Joyce – conceito inventado coincidentemente por William James, filósofo e psicólogo irmão do romancista Henry James –, revela-se na fusão de mundos interior e exterior em Terra estranha, atestando-se a complexidade absurda – por que não dizê-lo – do sujeito contemporâneo.

A questão exterior dominante, digamos, em Terra estranha é o racismo contra negros nos Estados Unidos, uma questão amplamente social que exibe contornos dilaceradores à medida que é associada à questão afetiva, ao amor, à interioridade dos indivíduos, portanto. Assim como n’O quarto de Giovanni, o objeto visado por Terra estranha, o que se coloca num ponto crítico, é a sociedade estadunidense, suas moralidades.

ANTI-HERÓI 
Projeto ambicioso, Terra estranha, iniciado ainda em 1948 e finalizado em 1961, compõe-se de três livros, ao longo dos quais a condição humana é sistematicamente tensionada a partir de uma escala de razão prática, de experiência histórica nua e crua, num mais além dos idealismos cegos que alimentam grande parte da produção artístico-literária.

O primeiro livro, sob o sugestivo título de Easy rider (Sem destino) a trazer à lembrança o filme homônimo de Dennis Hopper (1969), marco da contracultura, leva-nos ao submundo de Rufus Scott, um negro do Harlem, pobre, baterista de jazz, que se vê atormentado pelo racismo.

Até aqui, nada mais estereotipado, soando como mais uma das histórias do povo percebido frequentemente apenas como exótico do jazz, os Parkers, os Coltranes, chapados, perdidos. Mas a questão é justamente o que um escritor da estatura de Baldwin faz com os estereótipos com os quais precisa lidar para representar o seu tempo.

Ao se reconhecer inviabilizado socialmente, depois de uma longa crise existencial agudizada por um conturbado relacionamento com uma mulher branca, natural do Sul dos EUA, a garçonete Leona, com sua experiência de maltratada por um ex-marido bruto, Rufus perde a razão de viver e se atira, numa atitude de protesto contra seus opressores, da ponte George Whashington, um dos pais-fundadores dos EUA.

Esse primeiro livro, como no jazz, estabelece uma espécie de base, de princípio de execução, sobre a qual os outros dois serão “improvisados”, deixando em suspenso questões de classe, de raça e de sexo.

Ao longo desse primeiro movimento da obra, essas questões são insinuadas como constitutivas do drama de Rufus, demandando, para a inteligibilidade do personagem, um anti-herói a contragosto como tantos negros, e consistência do romance, tensionamento.

Logramos perceber que esse drama está vinculado a um desejo de ultrapassamento de barreiras que se impõem ao sujeito social negro: a barreira da pobreza, a barreira do racismo, a barreira da heteronormatividade, em certos casos.

Rufus se recusa a ficar restrito ao Harlem, a ser mais um negro segregado; recusa-se a se relacionar apenas com negros, estabelece relação de amizade e amor com brancos.

Entre os relacionamentos inter-raciais estabelecidos pelo baterista, dois suscitam bastante curiosidade, ao final de Easy rider: com Vivaldo Moore, descendente de irlandeses, escritor inédito que sobrevive trabalhando numa livraria, e com Eric, ator nascido no Alabama, que, lembrando o próprio Baldwin, decide viver no Sul da França.

A qualidade desses relacionamentos inter-raciais, o que significaram na via-crúcis de Rufus, diz muito sobre o horizonte hermenêutico de Baldwin, sobre o tipo de dispositivo que o seu romance constitui, afinal, para a compreensão da vida social do negro estadunidense.

Essa qualidade se entremostra, ainda no primeiro livro, à medida que Vivaldo Moore, amigo íntimo de Rufus, vê-se subitamente apaixonado por Ida, única irmã do baterista, que, para honrar a memória do irmão, passa a sonhar em ser cantora enquanto trabalha como garçonete.

Ida encontra o primeiro obstáculo à realização do seu sonho na própria percepção estereotipada que Vivaldo externa sobre ela durante jantar em casa de amigos brancos, bem-sucedidos, do seu falecido irmão, o escritor Richard Silenski e sua mulher Cass.

Ao desconfiar de que o interesse manifestado por um produtor branco de TV ali presente, Steve Ellis, seria apenas profissional por Ida, Vivaldo acende o drama racial da mulher negra: “Você acha que eu não passo de uma puta”, diz Ida entre lágrimas, humilhada, acusação que Vivaldo, evidentemente, nega. Exibe-se, assim, a crise, o impasse como qualidade do relacionamento inter-racial agora entre mulher negra e homem branco.

INDIVIDUALISMO 
O segundo livro que integra Terra estranha, sob o título de A qualquer momento, desempenha um papel bastante elucidativo do constructo de Baldwin. Desdobra a matéria que permanece dobrada ao longo de todo o primeiro livro, de modo a enriquecer nossa percepção sobre o drama de Rufus.

Esse momento da obra também expõe elementos que nos fazem pensar sobre o escopo social, estadunidense, desse drama. Estimula-nos a transpor a restrição da experiência histórica a indivíduos, a mania liberal que se tem de perceber indivíduos como super-homens, supermulheres.

O modo como a narrativa coloca o “sonho americano” em questão não poderia ser mais surpreendente: a partir do tensionamento da esfera afetiva, do que se passa com indivíduos relacionados, casados, lutando juntos pela felicidade, pela realização pessoal.

O que se passa com esses indivíduos em relação – questões de gênero, de classe e de raça – é significativo, sobretudo, para que percebamos a riqueza da percepção de Baldwin sobre a condição humana. Poderíamos dizer que se trata de lugar-comum de toda uma geração que se formou à sombra de Heidegger, de Sartre, de Camus, de Marcuse etc. Mas não.

O que é decisivo em Baldwin é a sua própria experiência histórica, a profundidade dessa experiência, tudo aquilo que o fez encontrar um sentido de humanidade como algo irredutível à razão puritana, como desrazão até. De uma hora para outra, tudo pode desabar, desfazer-se, revelar-se outra coisa muito diferente do que parecia ser à primeira vista.

A qualquer momento nos apresenta o casal Eric e Yves vivendo seus últimos momentos no Sul da França, pois Eric está em vias de retornar aos Estados Unidos para atuar numa peça na Broadway, o que significará um salto na sua carreira de ator, por um lado, e um retorno à sua “terra estranha”, por outro. Ao mesmo tempo em que se desvela a homossexualidade de Eric, também se revela, nesse movimento da obra, a qualidade do seu relacionamento com Rufus.

As apreensões que precedem o retorno de Eric vinculam-se ao fato de que terá que reencontrar Nova York depois da morte do baterista, reconciliar-se com um lugar do qual saiu depois de uma experiência afetiva traumática com um homem negro. O aparecimento de Eric abre espaço para uma reflexão sobre relacionamento erótico-afetivo em geral, não apenas homoerótico.

Eric, representado como sujeito finalmente feliz no relacionamento, não deseja que sua volta aos EUA signifique o abandono de Yves. Este, por sua vez, ilustra bem o quanto o realismo baldwiniano é sempre crítico, refratário ao óbvio: Yves é branco, francês, mas é filho de mãe pobre, com um histórico de prostituição, assim como a mãe, para sobreviver.

Como uma espécie de metáfora desestabilizante, pelo simples fato de exibir uma estabilidade física e psicológica, Eric, já em Nova York, acaba por provocar a instabilidade de um casal-padrão, heteronormativo, Richard e Cass. Eric entra numa relação com Cass, que o procura em razão do esfriamento da relação com Richard. Este, diante da confissão da traição pela mulher, vê o mundo desabar, assim como a Hella de O quarto de Giovanni, em virtude da homossexualidade de Eric.

Ainda no segundo livro, o ponto alto do tensionamento da dimensão erótico-afetiva encontra-se no discurso de Ida, revelador, sobretudo, da experiência histórica da mulher negra. Confrontando Vivaldo, o namorado que não se cansa de lhe declarar seu amor, ela diz, sempre “vingando” a morte do irmão Rufus: “As pessoas não têm compaixão. Vão esquartejando você, membro por membro, em nome do amor. Depois, quando você morre, depois que te mataram por te fazer passar tudo aquilo, dizem que você não tinha caráter”.

JAM SESSION 

O terceiro livro de Terra estranha, com o sugestivo título cristão de Rumo a Belém, fecha a jam session de Baldwin de modo tão inquietante quanto a abertura e o desenvolvimento, numa dinâmica de desvelamento-velamento, levando-nos a refletir sempre sobre a complexidade do real, sobre por que, afinal de contas, não é responsável, em face dos sujeitos sociais, tirar conclusões baseadas apenas em preconceitos.

Hostilizado por Ida, que racializa tudo à sua volta, Vivaldo acaba por buscar amparo no amigo Eric, com quem, destilando o remorso pela morte de Rufus, experiencia, em meio a uma noite etílica, um casual sex, ultrapassando uma fronteira que não conseguira ultrapassar em relação a Rufus, nem mesmo num dos últimos momentos de vida do baterista. O remorso decorre precisamente do pressentimento de Vivaldo de que abraçando o amigo, na cama onde este agonizava, podia lhe ter salvado a vida.

A cena configura uma espécie de apologia da harmonização humana para além de quaisquer convenções, de sexo, de gênero, de classe, raça etc. A harmonização pressupõe, neste caso, uma compreensão entre indivíduos, de modo a superar a solidão, a angústia, o desespero, tudo aquilo que, no limite, acaba por tornar a vida insustentável, levando, como no caso de Rufus, ao suicídio.

O ato subversivo de Terra estranha, que reverbera o pensamento crítico de James Baldwin, consiste em negar as negações impostas pela vida social, em dizer – como o personagem David, d’ O quarto de Giovanni, não conseguiu fazê-lo – sim à vida, ao estar no mundo, apesar de tudo.

O QUARTO DE GIOVANNI (1956)

>> De James Baldwin
>> Tradução de Paulo Henriques Britto
>> Companhia das Letras
>> 232 páginas
>> R$ 49,90 e R$ 36,90 (e-book)

TERRA ESTRANHA (1962)

>> De James Baldwin
>> Tradução de Rogério W. Galindo
>> Companhia das Letras
>> 544 páginas
>> R$ 69,90

SE A RUA BEALE FALASSE (1974)

>> De James Baldwin
>> Tradução de Jorio Dauster
>> Companhia das Letras
>> 224 páginas
>> R$ 49,90 (pré-venda)

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