‘O Abutre’ e a regulação da mídia: onde travar o debate?

O novo ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, não perdeu tempo: tomou posse e começou a operar ao mesmo tempo. A regulação da mídia será uma das prioridades: falou em desconcentrar o setor, mas enfatizou que não tem projeto ou meta específica – antes quer fomentar um debate nacional, de modo a que o teor e o escopo da regulação sejam sugeridos por uma discussão ampla, democrática. O ministro deixou claro que a regulação abrangerá o negócio da mídia eletrônica que vive no regime de concessão pública. Se cumprimos o previsto na Constituição não haverá o menor risco de atentar contra a liberdade de expressão.

Por Alberto Dines no Observatório da Imprensa

Bem-vindo ao clube, ministro! Outros já o tentaram – sem qualquer resultado.

Mas se o debate é fundamental e prioritário, onde deverá ser travado? Na própria mídia? Melhor desistir: a mídia não se discute, tem horror ao espelho, mesmo quando jornais são convocados para examinar com rigor o desempenho da TV ou vice-versa.

O Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional, estabelecido pela Constituição de 1988 para funcionar como fórum de discussão, passou grande parte da sua existência (14 anos) engavetado, e depois de um curto intermezzo de atividade, foi desativado. Voltou a operar numa espécie de clandestinidade amiga para poupá-lo de críticas e evitar que a problemática escolha do cardeal do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta, para presidi-lo fosse contestada.

Cúmplices do horror

“O Abutre” é um excelente filme sobre a falta de escrúpulos de cinegrafistas freelancersque trabalham de madrugada na área de Los Angeles. É também uma crítica aos sociopatas que se drogam através de fiapos da informação na internet.

Não é o primeiro filme que faz a crítica do jornalismo. Poderia ser o milionésimo. A imprensa iniciou-se como personagem em 1909, em “The Power of the Press” (O poder da imprensa, de Van Dyke Brook). Em 1993, o maior semanário português, Expresso, em parceria com a Cinemateca Portuguesa, organizou um belíssimo ciclo com 50 clássicos sobre jornalismo, começando com o remake de “The Power of the Press” dirigido em 1920 por Frank Capra.

Editado pelo brilhante jornalista Joaquim Vieira (criador do primeiro Observatório da Imprensa, em Portugal), o catálogo da mostra lista quase quinhentas produções ao longo de 84 anos (1909-1993). De lá para cá (1993-2015) é possível imaginar que outras centenas de produções cinematográficas ou seriados de TV (como “Newsroom”) poderiam ter sido realizadas nos quatro cantos do mundo. Ásia, inclusive.

E por que razão “O Abutre” serve de paradigma para comprovar a inapetência da imprensa nativa para o autoescrutínio?

Simplesmente porque o filme está disponível na íntegra (embora em tela pequena) no YouTube, inteiramente grátis, e até o momento em que este texto está sendo redigido foi visitado apenas por pouco menos de três mil pessoas.

Por que o desinteresse de cinéfilos e “midiéfilos”? O filme é ruim? Ao contrário, excelente. Explicação: não foi badalado, nem discutido, está escondido, sujeito apenas ao movimento boca a aboca. Publicadas algumas resenhas, o assunto foi encerrado. Os códigos corporativos vigentes não permitiriam ir adiante.

Temas para debate não faltam: a começar pelo título em português – “O Abutre”, que em inglês seria “Vulture”. O nome original, “Nightcrawler”, designa um tipo de verme que rasteja durante a noite e é usado como isca para pesca de anzol.

Estes cameramen só trabalham à noite, por conta própria, cobrindo roubos, estupros, assassinatos, acidentes e vendendo imagens cruéis para alavancar as audiências dos telejornais das 6 da manhã.

Não são repórteres, nem jornalistas: a produção da emissora obtém os dados básicos, edita o material e o coloca no ar. Não é coisa de abutres (aves de porte, que rapinam à luz do dia), são rastejadores noturnos que através da faixa de rádio da polícia às vezes até se antecipam a ela. Tão sem escrúpulos quanto os bandidos cujas façanhas cobrem, entregam o produto em mãos (ou via digital), acertam o preço, geralmente não barganham e recebem a grana na hora.

Os (as) infelizes que lidam com os crawlers – plantonistas da madrugada – desempenham funções até piores (como a personagem Nina do filme) porque sabem como tirar partido do horror, mesmo quando o advogado de plantão recomenda prudência e moderação no sensacionalismo.

Fora da pauta

Não há razão para sequestrar este debate. O fenômeno não é brasileiro, mas seria instrutivo examiná-lo preventivamente: os crimes da madrugada ocorrem em comunidades da periferia onde nem a polícia chega com facilidade. Nossos sindicatos não permitem a intrusão desses lúmpen. Os baixos instintos aqui são mostrados em horário nobre, em HD, para milhões de espectadores que precisam sonhar e não para os que precisam de adrenalina para acordar.

Um dia teremos algo assemelhado aos nightcrawlers, na telona ou na telinha de celulares. E lá chegaremos lampeiros justamente porque nossa mídia está inacessível, perto do céu, fora da pauta. Mídia aqui não é assunto da mídia. Tal como os rastejadores, nossa mídia prefere a faina noturna. Parece criança que sonha em ser invisível.

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