O aprendizado das cotas

A educação, sozinha, não vai resolver graves problemas da desigualdade e do racismo. Mas ela tem uma importante contribuição a dar

Os intensos debates que culminaram com a sanção da Lei de Cotas em 2012 foram feitos, muitas vezes, com base em premissas que só poderiam ser comprovadas ou refutadas com a experiência na prática. Dez anos depois, justamente quando o Congresso Nacional faz um balanço do que ocorreu no período, as evidências apontam para um saldo positivo.

Mesmo assim, um em cada três brasileiros ainda se posiciona contrário à política, segundo pesquisa recente do Datafolha. Nesse sentido, temos um duplo desafio: aperfeiçoar a Lei de Cotas e fortalecer a agenda de equidade junto à sociedade brasileira.

É preciso primeiro reconhecer que as cotas foram resultado de lutas históricas do Movimento Negro. Alguns marcos importantes nessa trajetória foram a participação do Brasil na Conferência de Durban, de 2001, e o pioneirismo da Uerj em 2002, primeira universidade pública a ter cotas raciais.

Hoje, podemos dizer que elas foram bem-sucedidas em seus objetivos, ainda que persistam desafios significativos, como o acesso ainda muito desigual aos cursos de maior prestígio econômico e a necessidade de mais políticas de apoio aos cotistas.

Vários estudos recentes têm comprovado a eficácia da lei. Em artigo publicado em 2019, Adriano Senkevics e Ursula Melo mostram que a participação de ingressantes oriundos do ensino médio público aumentou de 55% para 64% entre 2012 e 2016, sendo que os grupos mais beneficiados foram os autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Podemos dizer também que esse processo não resultou em piora na qualidade do ensino ou aumento da evasão.

Estudo de 2022 coordenado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ e pela Ação Educativa comprova também aumento de ingressantes por cotas no ensino superior entre 2010 e 2019, além de uma menor evasão nesse grupo. Mesmo numa das universidades que mais resistiu à política, um estudo de 2022 coordenado pela professora Marta Arretche (USP), aponta que a diferença entre as notas de cotistas e demais alunos na USP cai gradualmente ao longo do curso, tanto naqueles menos concorridos quanto nos mais.

Ou seja, a excelência da universidade pública não está apenas garantida, mas também mais diversa e, portanto, mais qualificada.

Grupos de pesquisas que têm se preocupado em analisar sistematicamente um conjunto de estudos também têm constatado sua eficácia. É o caso do Consórcio das Ações Afirmativas, com especialistas da UFBA, UnB, UFRJ, UFMG, UFSC, Uerj e Unicamp, coordenado pelo Afro-Cebrap e pelo Gemaa-Iesp, que, ao considerarem mais de 900 artigos científicos sobre o tema, identificam que 71% chegam a conclusões positivas, 18% citam problemas localizados e 11% apontam resultados negativos.

A despeito das evidências positivas, garantir a permanência dos estudantes segue sendo um desafio. As universidades devem dispor de um orçamento para a manutenção dos alunos em seus cursos através da oferta de bolsas de iniciação científica (CNPq e Capes) e de estágios remunerados na própria universidade.

No entanto, em 2021, 30 das 69 universidades federais sofreram cortes orçamentários, tornando cada vez mais difícil combater a evasão. Agora em 2022 17 delas correm o risco de interromper suas atividades em novembro, conforme mostrou reportagem de Bruno Alfano nesta semana, n’O Globo.

Temos muitos aprendizados com os dez anos de cotas no país. O principal destaque positivo é que, a partir da elevação das expectativas dos estudantes, do acesso, da permanência e da aprendizagem, fomos capazes de construir uma política eficaz na redução das desigualdades raciais no Brasil. O ponto de atenção é que, como sempre soubemos, problemas tão graves e com raízes históricas tão profundas não se resolvem apenas com mudanças na política de acesso ao ensino superior.

A educação, sozinha, não vai resolver graves problemas da desigualdade e do racismo. Mas ela tem uma importante contribuição a dar. Precisamos, para isso, não apenas renovar a Lei de Cotas, mas ampliar a pauta das ações afirmativas ao longo de todo ciclo educacional e reconhecer que as vulnerabilidades dos beneficiários são herdadas desde o berço, e muitas vezes agravadas ao longo da vida.

O esforço tampouco deve ficar restrito ao campo educacional. Em todas as áreas, sociais e econômicas, é preciso que esse seja um compromisso de todos. O momento é agora.

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