Então, “o batidão foi descendo, descendo, até chegar, hoje, ao chão dos melhores endereços da cidade” – diz, em bom estilo mercadológico, a abertura da matéria publicada no O Globo em 26 de maio. Mas que batidão é esse que, aos nossos ouvidos, vem soando, já algum tempo, como qualquer marchinha animada de carnaval? Será mesmo funk? Será mesmo melody?
O funk, pelo que sabemos aqui no Lote, é um gênero musical, abrangendo vários estilos, difundido a partir do trabalho de músicos como James Brown, George Clinton, Prince,Michael Jackson, etc. Ele se caracteriza pelo diálogo, num clima extremamente dançante, entre baixo e bateria, geralmente com uma dinâmica seção de metais pontuando, em contraponto, a melodia principal.
Mas não é esse o som dos artistas estabelecidos e emergentes citados na matéria…
O termo funk, designando a característica intrínseca de toda música verdadeiramente afro-americana, isto é, a sua autenticidade negra, teve originalmente, em inglês, entre outros significados, o de amedrontamento, pânico. De onde funky ser algo que amedronta, que semeia o pânico. Mas o vocábulo, com sentido estendido, ganhou conotação positiva como, no Brasil, fera, sinistro etc.
Aí, a gente já começa a entender um pouquinho melhor. Mas… E a marchinha? Como é que entra nessa história?
Num primeiro vislumbre, lembramos que já há algum tempo a capoeira freqüenta o mesmo ambiente das ações sociais, dos projetos de cidadania que popularizaram o hip-hop e alavancaram o funk — vocábulo que já merece ser abrasileirado para fânqui, como a partir daqui (gra)faremos, sem aspas.
Lembramos também que o universo da capoeira abriga o maculelê, misto de dança guerreira e jogo de bastões, cujo nome deriva, provavelmente, do quicongo makélelè, barulho, algazarra, vozearia, tumulto. E que, segundo a tradição, existiria em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, pelo menos desde 1757, ano de inauguração da principal igreja local.
A ritualística do maculelê tem início com a “marcha de Angola”, na qual os participantes percorrem as ruas e praças em marcha gingada. Ao chegarem ao local principal da representação, trava-se a dança-luta: os figurantes batem os bastões uns contra os outros em compasso binário, executando passos de capoeira e samba, e entoando canções cujos textos fazem referência expressa a localidades históricas do contexto angolano, como Cabinda, Quibala, Luanda etc. Nós somos pretos da Cabinda de Luanda/ nós somos pretos do soba de Quibala, diz uma delas.
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É aí, então, que a marchinha do fânqui revela sua identidade, durante muito tempo disfarçada de drum & bass, miami-bass, batidão, sei lá. E revela cantando: Sou eu, sou eu/ sou eu, maculelê sou eu.
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Fonte: Nei Lopes