A primeira vez que vi Emanoel Araújo, ver de ver mesmo, foi numa apresentação do Naná Vasconcelos, no Teatro Municipal de São Paulo. Era domingo de manhã e depois de aplaudirmos o Naná, emocionadas e de pé, Emanoel se posicionou na porta de entrada, aberta para ele de maneira simplesinha, mas o movimento de chegada daquele senhor elegantíssimo foi triunfal.
Eu tenho sorte de cronista, vocês sabem, e estou sempre bem posicionada para explorar (ou inventar) os melhores ângulos da história. Pois bem, naquele dia, sentada na antepenúltima fileira da audiência, bem no canto, pude ver detalhes de seu posicionamento para a performance.
O Sr. Emanoel Araújo arrumou o chapéu, a fivela do cinto, passou uma mão pelo lado do blazer branco que talvez tivesse alguma ranhura no tecido que só ele perceberia, alinhou a gravata vermelha sobre a camisa branca, estufou o peito, levantou ainda mais a cabeça e deu o primeiro passo com o pé direito para atravessar o longo corredor até Naná que estava ali no palco sorrindo, como uma mão aberta, voltada para o público, e a outra sobre o coração. Emanoel empunhou com as duas mãos um imenso buquê de flores e caminhou até o palco desferindo passos gigantescos e firmes. Entregou as flores a Naná, que nessa altura já havia tirado a mão do coração e estendia as duas para receber as flores. Sorrindo, sempre sorrindo.
Ainda não é o fim da crônica, mas conto a vocês que as flores eram multicoloridas, que Emanoel estava de terno branco e acho que tinha um lenço no bolso do paletó, mas não consigo me lembrar da cor dos sapatos dele. Corta.
Externa em Salvador, na Carlos Gomes, provavelmente num sábado, início da tarde. Avisto Emanoel Araújo com um casal de gringos e me aproximo. Não me perguntem para que me aproximei, não foi uma decisão racional, foi algo meio magnético. Eu não sou capaz de abordar ídolos simpáticos e receptivos, não faria com um artista que tinha fama de genioso. E o que eu poderia fazer? “Bom dia, licença, parabéns pelo trabalho”; “tenho muita admiração pelo senhor”; “obrigada por tudo o que o senhor faz pela arte brasileira e pelos artistas negros”?
Eu não tinha nada a dizer, mas algo me atraía para ficar perto dele. Tive então a genial ideia de me esconder para não incomodá-lo e ao mesmo tempo me manter por ali, como quem não quer nada, ouvindo a conversa dele com os gringos Como não aprendi nada nos filmes sobre a KGB, me camuflei atrás de um poste para vê-lo mostrando coisas da arquitetura dos prédios. Talvez eu quisesse mesmo pescar algum comentário para depois repetir com ares de originalidade.
Emanoel se movimentou com o casal e o próximo poste estava muito longe. Para continuar invisível, resolvi me fazer de turista que também observava o prédio. Parei a uns dois metros deles e acho que Emanoel me viu. Quando ousei mirá-lo, flagrei uma olhadinha de canto de olho em minha direção. Aquele sol de estourar mamona fritava meus dois neurônios e eu abri o livro que tinha na mão para disfarçar. Fiquei uns segundos assim escondida com o livro na frente do rosto e quando o escorreguei até o nariz cruzei com os olhos de Emanoel, que tinha os braços cruzados sobre o peito. Baixei o livro até o queixo e balbuciei um pedido de desculpas. Ele gargalhou, feito Exu Caveira.
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