Nesta semana, as redes sociais foram tomadas por um debate intenso: a pertinência ou não da indicação da sambista Fabiana Cozza para interpretar o papel de dona Ivone Lara em um especial que está sendo montado para homenagear a diva do samba morta este ano. Motivo da polêmica: a cor da pele de Fabiana Cozza.
Por Dennis de Oliveira, da Revista Cult
Os contrários diziam ser ela de pele clara (enquanto dona Ivone Lara tinha a pele “retinta”) e que a escolha de uma mulher que, embora se assuma como negra, tenha pele clara, é um indicador do branqueamento estético imposto pela industria cultural brasileira. Já os defensores de Fabiana Cozza argumentavam que ela sempre se assumiu como negra e sua identidade racial era dada pelo seu pertencimento ao universo do samba e das tradições de matriz africana. E que esta discussão sobre tom de pele era uma manifestação inadequada de uma ideologia chamada de “colorismo” que dividia ainda mais a comunidade negra. No fim, diante da polêmica, Fabiana Cozza renunciou ao papel.
Como toda polêmica de rede social, os ânimos se acirram e os discursos ficam muito assertivos, em detrimento de serem mais reflexivos. E, apesar de todo o histórico artístico e político de Fabiana Cozza na comunidade negra, não foram poucos que não a reconheceram como representativa da comunidade negra – alguns até a considerando como uma mulher branca.
Em uma análise rápida das posições, percebi que a esmagadora maioria dos que condenaram a indicação de Fabiana Cozza são pessoas mais jovens que têm exercido seu ativismo no campo das narrativas midiáticas. São pessoas imersas na sociedade da inflação das informações. E é por este motivo que representatividade e visibilidade praticamente se tornam sinônimos. A argumentação de que é necessário “aumentar a visibilidade de mulheres de pele mais escura” nos produtos midiáticos era sempre justificada como uma forma de combater a ausência de representatividade negra. E que os espaços concedidos a pessoas mestiças ou de pele mais clara nos produtos midiáticos era uma forma de invisibilizar a população negra de pele mais escura.
Chamo a atenção para este destaque dos espaços de visibilidade. Há, aqui, uma recuperação do conceito de “homem invisível”, elaborado a partir do romance de Ralph Ellison de mesmo nome, que conta a história de um jovem negro vindo do sul dos EUA que sofre com a indiferença (invisibilidade) da sociedade racista. A invisibilidade presente nesta obra de Ellison, entretanto, é uma metáfora da interdição dos sonhos por conta da negação das oportunidades a negras e negros. Invisibilidade aqui é negação da condição de cidadania. Uma discussão pertinente enquanto se mantinha ainda as estruturas tradicionais da sociedade moderna.
Entretanto, a luta pela visibilidade nos tempos da sociedade da inflação de informações adquire outros sentidos. É a presença nos espaços de midiatização. É a disputa pelo sinóptico, o poder que se exerce pela visibilidade, conforme afirma Bauman. E por conta disto, como se trata de uma visibilidade imagética, a discussão recai nas características desta imagem. E, portanto, neste caso, o debate se centrou no fenótipo da Fabiana Cozza. A discussão de identidade racial se concentrou neste aspecto a ponto de se concluir, nesta perspectiva, que pessoas negras de pele mais clara tem privilégios neste aspecto da visibilidade. O que não deixa de ser correto.
Já os defensores de Fabiana Cozza procuraram outra matriz argumentativa. Reconheceram a sua identidade negra em outro campo – o lugar. O professor Muniz Sodré, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que o ser-negro é um ser-lugar. Isto é, as diferenças morfológicas da humanidade (que foram, incorretamente, classificadas como “raças” no sentido biológico) se transformaram em lugares hierarquizados pelas estruturas de poder, tanto por mecanismos de dominação como de segregação. Estes lugares hierarquizados – que podemos metaforizar na Casa Grande e Senzala – se transformam também em espaços de práxis (conservadora ou de resistência). Aí que se constitui a construção de uma identidade de um ser-lugar. A resistência das senzalas buscando transformá-las em terreiros (ou quilombos) recupera elementos tradicionais e de subjetividades alternativas que se contrapõem a um processo de desumanização e objetificação operado pelo sistema de poder.
Chama a atenção, neste caso, o fato de que quando se constrói a afirmação de que a esmagadora maioria dos jovens assassinados pela polícia militar no Brasil é composta por negros ou que a maioria dos encarcerados também é negra, entram negros de pele escura e de pele mais clara. O que os une nesta situação é o lugar que ocupam, o lugar da segregação imposto pelo sistema, a periferia, as senzalas modernas. Porém, o que se trata aqui não é um problema de visibilidade midiática e sim de falta de oportunidades. Assim como nos outros dados estatísticos referentes a desemprego, escolaridade, longevidade, entre outros.
Outra argumentação é a colocada pelo pensador brasileiro Oracy Nogueira, de que no Brasil, ao contrário dos EUA, o preconceito é de marca e não de origem. Isto significa que os preconceitos raciais por aqui ocorrem pelas características fenotípicas e não pelos pertencimentos originários, como acontece nos EUA. Na nação estadunidense, as próprias instituições governamentais decidem a classificação racial, diferente da “autodeclaração” que ocorre no Brasil. E, de fato, esta situação tem causado dilemas por conta da implantação das ações afirmativas em que o pertencimento racial é feito pela autodeclaração e isto tem gerado fraudes.
Mas o que se tem nisto tudo, além da diferença de paradigmas de argumentação, é uma certa confusão entre “preconceito” e “racismo”. O racismo, como mecanismo estrutural de segregação e hierarquização, atua contra negros como um todo – por isto, a periferia e as zonas de exclusão são ocupadas por “pretos” e “pardos”. Os comportamentos preconceituosos se expressam de forma distinta, em uma dimensão hierárquica, levando em conta a tonalidade da pele. Evidente que o preconceito contra pessoas mais “escuras” sustenta um sistema racista que oprime a todos negros, de pele clara e escura.
O que se coloca então neste dilema são as estratégias de combate ao racismo: dentro das lógicas da sociedade da inflação de informações em que representatividade significa visibilidade e aí se enfrenta as práticas preconceituosas “coloristas” das elites logotécnicas da mídia; ou se pensa como estratégia combater o racismo por fora destas estruturas da sociedade da inflação das informações, nas bases estruturais e institucionais que sustentam os mecanismos de opressão.
De qualquer forma, um estranhamento: mesmo aqueles que contestaram a escolha de Fabiana Cozza dirigiram suas baterias contra a sambista, e não contra o responsável pelo casting do especial. Lembremos que não foi ela que se propôs: ela foi indicada por alguém.