Se, para muitas feministas, o conceito de gênero é central, ganhando uma imensa importância para a compreensão das relações entre mulheres e homens, assim como do próprio questionamento do que se entende por homem e mulher, não podemos dizer que essa abordagem é unânime. Tratarei aqui de uma forte crítica que a socióloga brasileira Heleieth Saffioti, em sua obra Gênero, patriarcado, violência (2004) faz dos usos da categoria gênero.
Por Adriano Senkevics
Em uma de suas últimas obras publicadas, não podemos dizer que Saffioti inaugura ou reconceitua uma noção de gênero. Em tempo, a autora revisita a construção dessa categoria e, contrapondo-o à utilidade do então desgastado conceito de patriarcado, Saffioti conclui seu livro reivindicando a importância da categoria “patriarcado” em detrimento de “gênero” ou, ao menos, da utilização exclusivista do último.
Saffioti atribui à Gayle Rubin a sistematização do sistema sexo/gênero quanto à ideia de que a opressão das mulheres pelos homens não é inevitável. Para Saffioti, Rubin conceituou gênero de forma pretensamente neutra: assim como o gênero pode estar a serviço da opressão, pode também estar a serviço de relações igualitárias. Não dependeria do conceito em si, mas das relações sociais.
Em seguida, a socióloga retoma Joan Scott, a quem atribui a valiosa contribuição de que as relações de gênero estão imbricadas a relações de poder, as quais hierarquizam homens e mulheres ao longo da história. O problema, para Saffioti, é que Scott não faz ressalvas a uma concepção foucaultiana de poder – aquele que está dissolvido na sociedade –, o que dificulta imensamente um projeto de transformação social.
A partir dessas reflexões, Saffioti mostra que o conceito de gênero é muito mais vasto que o de patriarcado. Primeiro, porque o gênero acompanharia a humanidade desde sua existência, enquanto o patriarcado seria um fenômeno recente, particularmente articulado à industrialização do capitalismo. Segundo, porque o patriarcado diz respeito necessariamente à desigualdade e à opressão, sendo uma possibilidade dentro das relações de gênero, mas não a única (sobretudo se lutamos por mudanças!).
A questão é que gênero ganhou tamanha centralidade no debate feminista, que jogou o “patriarcado” para o escanteio. As sofisticações teóricas de variadas correntes do feminismo desqualificaram completamente a noção de uma “ordem patriarcal de gênero”. É justamente essa exclusividade do conceito de gênero que incomoda Saffioti.
Pois a autora questiona qual seria o interesse por trás da desconstrução do sentido do patriarcado em benefício dos ricos usos do gênero. Saffioti ressalta que nos últimos milênios da história, as mulheres estiveram hierarquicamente inferiores aos homens.“Tratar esta realidade exclusivamente em termos de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/marido, ‘neutralizando’ a exploração-dominação masculina” (SAFFIOTI, 2004, p. 136).
Para Saffioti (2004), o gênero está longe de ser um conceito neutro. Pelo contrário, ele “carrega uma dose apreciável de ideologia” (p. 136): justamente a ideologia patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulher e homens. Porque o conceito de gênero, na sua visão, não atacaria o coração da engrenagem de exploração-dominação, alimentando-a.
Assim, se gênero é um conceito útil, rico e vasto, sua ambiguidade deveria ser entendida como uma ferramenta para maquiar exatamente aquilo que interessa ao feminismo: o patriarcado, como um fato inegável para o qual não cabem as imensas críticas que surgiram (SAFFIOTI, 2004).
Muitos contrapontos poderiam ser colocados à opinião dessa importante feminista brasileira, sobretudo à sua leitura hostil ao conceito de gênero. Todavia, não podemos descartar seus esforços para conciliar, mesmo sob tensão, duas “estruturas sociais” (gênero e patriarcado) na compreensão das questões feministas.
Fonte: Ensaios de Gênero