Mulheres e feminismo no Brasil: um panorama da ditadura à atualidade – Por Adriano Senkevics

Os movimentos de mulheres vêm desempenhando um papel importante no ainda corrente processo de democratização da América Latina. Sua contribuição se deu tanto na luta contra os regimes militares que vieram ao poder na segunda metade do século passado, quanto no esforço de se institucionalizar, no âmbito do próprio estado, uma agenda política à serviço das demandas de mulheres. Essas histórias, contudo, têm diferentes compassos e, no Brasil, o processo de democratização, aliado ao fortalecimento de movimentos feministas, tem sido marcado principalmente por avanços dos últimos trinta anos para a atualidade.

Embora o Brasil tenha conquistado o sufrágio feminino em 1933, fruto principalmente de um lobby de mulheres escolarizadas pertencentes às camadas abastadas junto a políticos simpáticos à causa (MACAULEY, 2006), o movimento feminista brasileiro, ao reflexo do feminismo latino-americano, apenas se consolidou enquanto um movimento de massa em meados da década de 1970, no contexto da luta contra o regime militar (1964-1985), que se instaurou no país a partir de um golpe de estado apoiado pelos setores dominantes e pela política externa dos Estados Unidos, e de uma crise econômica a qual resultou em elevação das taxas de desemprego e subemprego, bem como arrocho salarial e corte de gastos sociais (SAFA, 1990).

 

Com a proibição, logo no início da ditadura, das formas de organização coletiva contrárias ao governo militar, as resistências à ditadura, de caráter institucional, estavam restritas ao único partido de oposição permitido, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), e a setores progressistas da Igreja Católica. No entanto, com o recrudescimento da censura e repressão a partir de 1968, as formas de resistência passaram a se constituir, cada vez mais, no clima de clandestinidade. À parte dos atores envolvidos nesses movimentos, o objetivo era único e claro: derrubar o regime militar. Assim, o primórdio de um movimento feminista brasileiro vai surgindo como uma forma das mulheres se posicionarem contra o regime em questão, conforme destaca Helen Safa (1990). Nesse contexto, o autoritarismo praticado pelo Estado dava pouca possibilidade para que outras pautas, as quais diziam respeito especificamente às demandas das mulheres, viessem à tona. Por um lado, as mobilizações de mulheres basicamente se somavam às formas de resistência à ditadura; por outro, o próprio engajamento político de mulheres já trazia, em si, uma revisão de uma ordem de gênero que relegava as mulheres a um papel secundário (SARTI, 2004), ainda que não sistematizada em bandeiras assim chamadas feministas.

Foi com a declaração, por parte da ONU, do ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, que o cenário passou a propiciar maior visibilidade ao feminismo. Debates feministas, antes tímidos, passaram a ser mais explícitos – a título de exemplo, nessa época duas revistas feministas de caráter militante foram criadas, Brasil Mulher e Nós Mulheres. Conforme essa década se aproximava do fim, acontecia o processo de abertura política, quando a repressão passou a ser reduzida e, ao mesmo tempo, uma ampla mobilização social que culminou com a anistia em 1979, na qual as mulheres foram protagonistas. Ainda, a volta de mulheres exiladas no exterior (as “retornadas”) permitiu que suas experiências com os feminismos norte-americanos e europeus pudessem se somar ao desenvolvimento de uma consciência feminista que já encontrava espaço no Brasil.

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Essa confluência de fatores fez com que o movimento feminista, na década de 1980, passasse a ser uma força política e social consolidada. De acordo com Sarti (2004), explicitou-se um discurso feminista que trazia em seu âmago um debate de gênero. Três processos passaram a acontecer simultaneamente: (1) a pluralização e mesmo fragmentação do movimento, que vai se desdobrando em diferentes frentes; (2) a criação de espaços institucionais para as mulheres no interior do estado brasileiro, o que permitiu que políticas públicas voltadas para mulheres e gênero se integrassem à agenda política do país; (3) por fim, a consolidação de um campo de pesquisas na área de mulheres e gênero.

Da mesma forma, com o fim do regime militar, em 1985, a sociedade brasileira se encontrou em um intenso processo de ebulição que girava em torno da promulgação de uma nova Constituição Federal e da criação de espaços institucionais que fizessem valer a democracia recém conquistada. No mesmo ano, dois importantes passos foram dados: a fundação das Delegacias de Defesa da Mulher, importante política adotada no combate a violência praticada por homens contra mulheres, e a constituição do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), uma instituição com autonomia financeira e administrativa, poder deliberativo e um orçamento razoável, com a finalidade de pôr em prática políticas orientadas à militância feminista (CALDEIRA, 1998).

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Se antes e durante o regime militar, a presença de mulheres nas casas legislativas restringia-se a 0,6%, na eleição de deputados para a Assembleia Constituinte chegou-se a 5,3%, o que significou 26 mulheres entre 559 deputados, sendo uma delas negra (Benedita da Silva). Embora numericamente diminuta, essa representação (o “Lobby do Batom”) aliada à força da CNDM, foi capaz de apresentar mais de cem propostas para a nova Constituição, sendo que 80% delas foram aprovadas e garantiram avanços significativos na questão de gênero, incluindo licença-maternidade de 120 dias, a criação de uma licença-paternidade, benefícios sociais e direitos trabalhistas para empregadas domésticas, direito ao divórcio, além de artigos garantindo a igualdade entre mulheres e homens independentes de cor/raça, ressalta Verucci e Patai (1991).

Nas anos 1990, a ascensão de governos de direita impediu avanços das pautas feministas no interior do próprio estado – a CNDM, por exemplo, nasceu no pós-ditadura, foi morta pelo governo Collor e enterrada pelo FHC. Contudo, a progressiva expansão do ensino superior, somada à influência do feminismo, favoreceu a entrada da questão de gênero nas universidades brasileiras. Se o primeiro estudo acadêmico sobre a mulher, apresentado por Heleieth Saffioti em 1967, datava da época do regime militar, foi só na década de 90 que os núcleos de pesquisa ganharam os contornos que possuem atualmente. Nesse processo, a substituição do termo “mulher”, característico da militância que se apresentou durante a transição democrática, pelo conceito de “gênero” trazia implícito, nessa revisão epistemológica, um amadurecimento teórico do feminismo (COSTA & SARDENBERG, 1994), o que não quer dizer que críticas não sejam aplicáveis. Ainda no início de 1990, os dois mais importantes periódicos feministas foram criados, a Revista de Estudos Feministas e os Cadernos Pagu, visando contribuir com a produção acadêmico-científica, as práticas de pesquisa e a discussão de teoria.

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Do ponto de vista político, com a eleição do Lula em 2002, retomou-se o projeto que se iniciara na democratização. Foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e, na mesma década, a promulgação de duas políticas públicas com impactos significativos nas relações de gênero: a lei Maria da Penha, com o intuito de combater a violência doméstica, e o programa Bolsa Família, um sistema de transferência de renda que favorece mais de 10 milhões de família, no qual a verba era repassada prioritariamente para as mulheres e mães de famílias de baixa renda.

Atualmente, apesar de certos progressos, como a eleição em 2010 da primeira mulher para o cargo presidência, o Brasil tem enfrentado uma disputa muito intensa em torno da agenda dos direitos humanos, frente ao crescimento de uma direita evangélica com fortes tendências fundamentalistas, a qual tem se fortalecido à sombra do PT. Tanto o movimento feminista quanto o LGBT não tem conseguido responder à altura e, nos últimos anos, temos assistido a uma série de retrocessos, entre eles: o veto ao programa Escola sem Homofobia, a maior iniciativa de combate à homofobia nas escolas; a proposição de um Estatuto do Nascituro, o qual coloca em xeque muitos das conquistas feministas no tocante ao aborto e violência sexual; demissões no Ministério da Saúde por conta de uma campanha visando o bem-estar e saúde das profissionais do sexo; por fim, a nomeação de um deputado fundamentalista, Marco Feliciano, na presidência da (falecida) Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Tudo isso indica que há muito chão a ser percorrido. E que o feminismo, mesmo que ignorado ou mal visto por muita gente, ainda tem muito a cumprir na história da nação.

 

 

Fonte: Ensaios de Gênero

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