Com o fortalecimento das concepções que valorizam as construções sociais e culturais sobre os processos biológicos e reprodutivos, eventualmente aparece alguma vertente que, tendendo a um construcionismo radical, parece não conseguir trazer o corpo – justo o corpo! – para a análise de gênero. Contrária a essa tendência, mas sem apelar para o determinismo biológico, a socióloga australiana Raewyn Connell busca sua definição de gênero, na sua importante obra Gender (2009).
por Adriano Senkevics,
Retomando a origem gramatical de gênero, Connell afirma que a linguagem, embora seja um aspecto importante do conceito, fornece poucos subsídios para entendê-lo, visto que certas palavras masculinas em uma língua são femininas em outra, e que mesmo idiomas neutros em termos de gênero podem designar estruturas bastante generificadas.
Partindo para outro referencial, Connell também nega a visão, incrustada no senso comum, de que gênero é uma diferença cultural entre homens e mulheres, a qual teria como base a divisão biológica de machos e fêmeas. Pautar o conceito de gênero pela noção de “diferenças” ou “dicotomias” é, para a australiana, muito complicado, pelas seguintes razões:
A vida humana não é tão dicotomizada quanto aparenta ser, pois mesmo a noção de espécie bissexuada tem sido questionada ultimamente. Contrapor mulheres e homens é ocultar as diferenças no interior dessas categorias. Além disso, focar nas diferenças é um problema, porque onde não houver diferença, não haveria gênero. E outra, e aqui Connell vai além de muitas concepções, gênero não pode se referir apenas ao indivíduo, como se toda a questão de gênero girasse em torno da “identidade de gênero”.
A saída, para a socióloga, é tirar a ênfase das “diferenças” e pensar nas “relações”. Gênero seria uma estrutura dentro das relações sociais, não sendo mera expressão da biologia, tampouco esquematizando um traço fixo ou permanente do caráter humano. Sua fluidez é inevitável, como um padrão de práticas e atividades altamente mutáveis.
Para Connell, o conceito de gênero não deve deixar o corpo de lado, como se esse fosse apenas um produto de construções sociais. O equívoco estaria em pressupor a primazia do corpo e da biologia sobre as demais estruturas, e não em entendê-lo. Na sua visão, a sociedade trata do corpo e lida com processos reprodutivos e diferenças entre os corpos, no sentido de que o corpo é um campo, uma arena, que é trazido para os processos sociais, onde a conduta socialfaz alguma coisa com a diferença reprodutiva.
“Gênero é a estrutura das relações sociais que se centra na arena reprodutiva”, define Connell (2009, p. 11, tradução minha), “e a configuração de práticas que trazem as distinções reprodutivas entre os corpos para os processos sociais.” Informalmente, Connell escreve que o gênero se refere à maneira pela qual a sociedade lida com os corpos e as consequências desse tratamento na vida dos indivíduos e do coletivo.
Com esse foco, Connell abre as portas para uma conceituação de gênero multidimensional e não baseada na premissa engessada de que o gênero reflete, necessariamente, uma diferença entre macho e fêmea reificada pela cultura. As mudanças não são um desafio, mas um pressuposto, a tal ponto que o conceito de gênero, ele próprio, possa deixar de existir em algum momento da história humana.
Porém, sua conceituação de gênero não acompanha sua sofisticada teoria sobre as masculinidades, de tal forma que seu conceito seja pouco evocado atualmente (CARVALHO, 2011). Sua ênfase demasiada na construção do gênero a partir de diferenças sexuais dá a impressão de que as relações de gênero, de um modo ou de outro, devem remeter à arena reprodutiva. Assim, o conceito de gênero por Connell, embora coerente com seu trabalho, não tem tido tanta utilidade para se pensar os desafios postos aos estudos de gênero.
Fonte: Ensaios de Gêneros