O corpo negro no cubo branco

Realizada em São Paulo, ação “Presença Negra” estimula discussão sobre segregação e desigualdade no país

Por Daniel Toledo Do O Tempo

A situação não é difícil de se imaginar: seguranças na porta, obras de arte espalhadas nas paredes, garçons circulando com vinhos e canapés ao redor de grupos de corpos brancos que conversam sobre os mais variados assuntos. Ainda que exceções venham se tornando cada vez mais comuns, é esse o retrato padrão das vernissages que semanalmente movimentam a vida cultural de qualquer grande cidade brasileira.

Pois foi na maior delas, São Paulo, que um grupo de artistas negros resolveu equilibrar o jogo e converter em ação artística a própria presença. Realizada pela primeira vez em outubro do ano passado, a ação “Presença Negra” ganhou grande repercussão na última semana, catalisando um amplo – e urgente – debate sobre segregação e desigualdade na ocupação dos espaços culturais do país.

“De fato, a ação surgiu de grande incômodo sobre uma sensação de isolamento comum a muitos negros que frequentam galerias de arte e outros espaços culturais de São Paulo. Isso porque a cidade tem uma efervescência cultural incrível, mas que ainda atinge um grupo muito restrito, que sem dúvida alguma não representa a diversidade cultural do país”, analisa o artista paulistano Moisés Patrício, um dos idealizadores do trabalho.

“Trata-se de uma ação visando à ocupação de galerias, museus e instituições culturais por um grande número de afrodescendentes, em dia de abertura de exposição. A visitação corre pura e simplesmente, ou seja, sem qualquer manifestação de ‘bandeiras’, apenas com a nossa presença no espaço, processando-se interação com todos os convidados, sendo que a apreciação é o mote da ação”, completa Peter de Brito, outro integrante de um grupo que, desde então, realizou a mesma ação em cinco ocasiões distintas.

Entre as questões imediatamente iluminadas pela performance, destaca-se, é claro, o nítido quadro de elitismo que se estende a diversas espaços da sociedade brasileira, tais quais galerias de arte, universidades e, por que não lembrar, o próprio Congresso Nacional. “Nossa simples presença já bastou para levantar questões e reflexões sobre as condições dos afrodescendentes no país, em especial nas relações com o circuito artístico”, reconhece Brito, criador de uma extensa obra que transita por linguagens como fotografia, objeto, performance, instalação e vídeo.

Articulação. Além de desdobrar-se em reflexões políticas de fundamental importância para a consolidação de um sistema artístico mais representativo em relação à realidade sócio-cultural do pais, a realização de “Presença Negra” tem fortalecido as relações de colaboração entre os inúmeros artistas afrodescendentes que atuam na capital paulista.

“Mesmo antes de concebermos esse trabalho, já mantínhamos aqui em São Paulo uma rede composta por mais ou menos 50 pessoas. Sempre nos reunimos para conversar sobre a produção de cada um e fazer leituras de portfólio, por exemplo. De certo modo, portanto, esses encontros já aconteciam, mas agora os levamos para galerias, museus e outros espaços culturais”, contextualiza Moisés Patrício.

“Discussões estão acontecendo, e espero que, com ações simples, consigamos provocar o início de algo maior. Essa ação, por exemplo, já possibilitou o contato com outros artistas, bem como a iniciativa de pensarmos mais projetos juntos”, acrescenta Brito.

Na visão de ambos, a combinação entre ações de articulação e visibilidade surge como um dos caminhos para reverter um panorama em que, mesmo correspondendo à maioria entre a população brasileira, negros e pardos seguem figurando como minoria tanto entre os artistas representados por galerias e museus como entre os frequentadores de boa parte desses espaços.

“O que nos interessa é promover encontros em vernissages, aproveitando essa oportunidade para gerar um movimento de combate às desigualdades nas artes e ganhar força por meio da sabedoria coletiva, além de incentivar a visitação a espaços culturais”, sintetiza Brito.

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