O desabafo dos jovens negros sobre a questão da roupa que estão vestindo: ‘Não é questão de vaidade’

Para a estudante de economia Laressa Teixeira, escolher uma roupa para viajar de avião vai muito além do conforto ou da praticidade. “É uma necessidade. Se eu estiver bem vestida, arrumada, as pessoas se sentem mais obrigadas a me tratar bem”, diz a jovem de 22 anos, do Rio de Janeiro.

Por Vitor Tavares, da BBC

Da mesma forma, o engenheiro florestal Lucas Cauan, também de 22 anos, se preocupa ao ir à universidade, em Aracaju. Ele aboliu chinelos, bermudas e camisetas do seu guarda-roupa. “Eu preciso ficar arrumado para não ser confundido com ladrão.”

Negros, os dois chegaram a essas conclusões após experiências que os fazem refletir, toda vez que saem de casa, sobre qual roupa vão usar.

Depoimentos como os deles vieram à tona após uma publicação de Laressa no Twitter que viralizou na rede social. “Quantos chinelos a gente evita por ter a pele (negra)?”, questionou a carioca ao relatar a forma como foi tratada ao embarcar para um compromisso do trabalho. O motivo, segundo ela, foi o chinelo que usava.

De acordo com o relato de Laressa, a diferença de tratamento começou ainda no VLT, veículo sobre trilhos que leva ao aeroporto Santos Dumont. Laressa teria sido a única a ter o bilhete conferido pelos fiscais que entraram no vagão.

No terminal, o incômodo veio com a perseguição de um segurança e o tratamento dado pelos funcionários da companhia aérea.

Em menos de 24 horas, a publicação contava com centenas de comentários de outros jovens negros contando como eles se preocupam na hora de escolher uma roupa – e como, assim, tentam sofrer menos discriminação nas ruas.

A estudante de economia Laressa disse que percebe a diferença de tratamento nas ruas quando ela está usando chinelos (ARQUIVO PESSOAL)

“O aeroporto não é um ambiente onde tem muitas pessoas negras. As pessoas não costumam nos ver ali. E as roupas acabam sendo uma armadura nossa contra o racismo'”, contou Laressa à BBC News Brasil.

No dia, segundo a jovem, ela viajou mais despojada porque iria passar no hotel e trocar de roupa antes do compromisso do trabalho. Em outras ocasiões, quando usou sapatos ou tênis, houve menos “olhares estranhos e atravessados”, conta.

A cientista política Nailah Neves teve uma crise de pânico quando precisou usar um chinelo (ARQUIVO PESSOAL)

‘Não é vaidade’

O pé à mostra também é uma questão para a cientista política Nailah Neves, de 27 anos. O único lugar para onde ela vai de chinelo é o terreiro.

Durante a faculdade, em Brasília, ela reparava que os colegas de classe, a grande maioria brancos, iam para a aula de bermuda, short e chinelo. Ela sempre ia de sapatilha, tênis, calça – e atribuía essa diferença a uma questão de vaidade.

Isso até ela machucar e dedo do pé e precisar ir de chinelo. “Foi o momento que percebi que não era isso. Os seguranças ficaram me olhando, me senti intimidada. Tive uma crise de pânico e comecei a chorar”, conta.

Mestre em direitos humanos e pesquisadora sobre questões do racismo, Nailah é filha de militantes do movimento negro e sempre foi ensinada em casa que precisaria saber se vestir, se portar e “ser três vezes melhor que os outros” para ser respeitada.

“Sempre achei que era questão de vaidade, mas não era. São dores do preconceito que me fizeram agir assim.”

Apesar de o tema racismo não ser tão recorrente na casa de Laressa, ela também passou por ensinamentos semelhantes: precisaria sempre estar impecável em relação à roupa.

“Meus pais também estão sempre bem vestidos. Mas será que a gente gosta mesmo de se arrumar ou a vida que nos fez se comportar asssim?”

Após ser confundido com um ladrão, Lucas Cauan mudou a forma de se vestir (ARQUIVO PESSOAL)

‘Cara de ladrão’

O principal medo, segundo Nailah, Laressa e Lucas, é serem acusados de algum crime.

No caso do engenheiro de Sergipe, por ser homem, o cuidado é redobrado. Adepto até então de bermudas de tactel e camisetas, ele deixou de usar essas peças após passar por uma situação constrangedora na universidade.

Era noite e Lucas estava atravessando uma passarela em um local escuro. Quando estava em cima da estrutura, percebeu que as pessoas que vinham na outra direção começaram a correr. Ele correu junto, mas só até perceber que elas corriam com medo dele. “Algumas pessoas falaram depois que era frescura minha, disseram que eu nem tinha ‘cara de ladrão’, mas isso ficou na minha cabeça”, disse.

Foi aí que Lucas resolveu seguir conselhos de colegas e passou a usar apenas calça para ir à universidade. “Sempre penso que não posso parecer o que as pessoas acham que é um ‘marginal'”. Na vida social, o jovem não se veste mais à vontade nem para ir a um bar com os amigos.

Em lojas e nos shoppings, as estratégias vão além da roupa que está usando: celulares na mão para mostrar que não vai pegar nada, bolsas próximas ao corpo e evitar movimentos bruscos.

“Não posso estar de qualquer forma, para não ser confundida com alguém que não teve o mesmo privilégio que eu e não pôde comprar essas roupas, calçados. Até para ir na padaria, eu tenho que ir ‘perfeita'”, conta Nailah.

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