O desafio de reconhecer o outro

Filósofa e cronista destes tempos de intolerância, a professora e escritora Marcia Tiburi reflete sobre o cotidiano e propõe o diálogo como chave-mestra

Por Henrique Araújo, do O Povo 

Em um ano marcado por atitudes em cuja origem está a negação do outro como possibilidade de discurso,“Como conversar com um fascista” propõe, um pouco em tom de galhofa, o impensável: desfazer-se provisoriamente das diferenças a fim de estabelecer contato com esse lado intransigente.

Levada ao pé da letra, a ideia parece fadada ao fracasso. Para a filósofa Marcia Tiburi, 45 anos, porém, o exercício de enxergar-se na hipotética situação de dialogar com esse fascista é uma condição primeira na busca por resolver impasses que levaram a sociedade brasileira a produzir cenas como a que viveu o artista Chico Buarque no final de 2015. Para a escritora, o episódio é sintomático destes tempos de inviabilidade do que temos de mais básico: a capacidade de conversação.

Na entrevista que segue, Tiburi revela-se pessimista quanto às perspectivas políticas para 2016, mas demonstra esperança em mobilizações como a que os estudantes organizaram em São Paulo durante protesto contra o redenho do sistema escolar.

O POVO – O seu livro mais recente, “Como conversar com um fascista“, parte de uma provocação interessante, que é propor um diálogo com quem nega o diálogo. Como isso é possível?

Marcia Tiburi – Esse livro parte de uma ironia. Como conversar com um fascista? Na prática, é impossível. O fascista é representante da ausência de diálogo. Tentei criar (no livro), em termos coloquiais, essa impossibilidade de diálogo com as pessoas mais próximas. O fascismo seria justamente a forma e o modo de ser daquelas relações em que o diálogo é impossível. O fascismo é evidentemente o contrário do diálogo. Ao mesmo tempo, quis colocar dessa maneira irônica porque, a meu ver, se trata de buscar a construção dessa democracia mais próxima. A gente não vai conseguir a construção da democracia fora dessa busca.

A busca pela democracia não é uma busca que o Brasil faz com a China, e nem uma busca que um partido faz com outro partido ou que uma religião faz com outra. É uma busca que precisa ser construída com todas as singularidades que existem.

No caso do fascista como representante dessa impossibilidade do diálogo, a gente encontra uma sociedade em que a própria relação com o outro é inviável. A outra pessoa é alguém em quem a gente esbarra e deposita as nossas angústias e infelicidades e projeta o nosso ódio, que é esse ódio mal-resolvido. O que sintetiza mesmo essa questão é que a gente tem que enfrentar essa ironia. Se você pensar em Sócrates falando “sei que nada sei”, e esse é o caminho do conhecimento, nós podemos pensar: vou conversar com quem não posso conversar. Esse é o caminho do diálogo.

OP Quais são os instrumentos reais que estão à disposição das pessoas para efetivamente travar esse diálogo com esse outro?

Marcia Tiburi – Diálogo é algo que não existe há bastante tempo. Diálogo é um termo que devemos usar pensando como uma especialização da conversação. A conversação é um nível mais simples e o diálogo é mais complexo nesse encontro entre diferenças. Num momento histórico fascista, desse fascismo concreto que a gente encontra no cotidiano, o que a gente vê é que as pessoas estão indisponíveis, inclusive para a mais básica conversação. Como no caso do Chico Buarque ou de vários exemplos de políticos que são agredidos, de pessoas que fazem parte de um determinado partido ou têm uma postura política diversa. O nível mais básico do relacionamento humano, que é a conversação, torna-se inviável, e o diálogo, que seria um nível mais complexo, fica impossível numa sociedade assim. O que há de disponível para as pessoas para que possam dialogar?

A gente precisaria reconstruir a subjetividade.

A nossa subjetividade – personalidade, caráter, jeito de ser, aquilo que cada um é na sua relação com o outro – vem sendo destruída por mecanismos que têm história. É o modo como as instituições tratam os indivíduos. Isso inclui família, estado, escola, igreja etc. Todas as instituições são máquinas de destruição das subjetividades, que é justamente aquilo que permite que alguém possa olhar para o outro. Aí vem o problema das instituições. Porque a tarefa das instituições seria produzir indivíduos que tivessem uma capacidade de reconhecimento do outro. Nesse sentido, a tarefa das instituições seria produzir cidadãos, ou seja, indivíduos que fossem capazes de encarnar a política e a ética no melhor sentido, de direitos e democracia. Na base, está essa questão do reconhecimento do outro, que é o que está em jogo. Essa pergunta é séria. A partir de que mecanismos nós poderemos retomar a conversação? A partir da escola, a partir da família etc. Nós precisaríamos reconstruir a sociedade para que os indivíduos pudessem existir não como figuras desnecessárias e desimportantes, mas como sujeitos singulares respeitados no seu lugar, como cidadãos. Então, as condições para que voltemos ao diálogo são as piores possíveis. Diálogo hoje é uma operação de resistência. A gente não pode programar o diálogo. A gente teria que refazer as condições a partir da quais o diálogo é possível. Apesar da inviabilidade do diálogo, é nele que a gente tem que insistir. Quando estou falando de diálogo, estou falando da valorização da singularidade e reconhecimento do outro. Tem que produzir esse jogo onde cada um pode ser quem é e cada um deve ser respeitado nesse ser quem é ao mesmo tempo. O fascista, na nossa sociedade, interrompe esse jogo porque não permite ao outro ser quem ele é.

OP Diálogo nunca foi uma tarefa tão urgente.

Marcia Tiburi – Nesse sentido, sim. Mas, para que ele possa existir na urgência que nos toma neste momento, precisaríamos construir outro tipo de subjetividade e dar espaço para essa outra subjetividade capaz de reconhecer a outra pessoa. Quando você pensa nos fascistas da nossa época, que são os neofundamentalistas, os ignorantes de plantão, os sacerdotes do preconceito, os políticos dos preconceitos, todos esses que lucram com os preconceitos… Se a gente pensar nessas figuras que hoje em dia estão ganhando espaço, então, pensando de um jeito muito pessimista, talvez a gente não tenha futuro. Mas é preciso romper com essa mentalidade que não reconhece o outro. E o diálogo é o caminho para essa resistência.

OP Você citou o caso do Chico Buarque, que foi abordado de forma agressiva na rua. O que isso revela de sintomático do clima político hoje no País?

Marcia Tiburi – A espetacularização da ignorância.
A forma como o Chico Buarque foi atacado, a forma como o Eduardo Suplicy foi atacado na Livraria

Cultura dois meses atrás…

As pessoas que atacaram agiram como pessoas, vamos colocar assim, burras. Eu tenho falado muito disso.

Quem é o burro?

O burro é aquele indivíduo que não é simplesmente ignorante. Ignorante sou eu, ignorante é você. Somos ignorantes sobre muitas questões. Mas, qual é a postura da pessoa inteligente? Ela via pesquisar, vai tentar entender, vai perguntar, vai ler, vai se esclarecer etc.

O burro é aquele que não tem vergonha da sua ignorância e usa sua ignorância de maneira prepotente, como se ela fosse uma grande verdade. Aquilo que ele deduz na sua ignorância, ele expressa sem nenhum autoquestionamento. Então, ele pode gritar com o outro: você é um merda.

Para o Chico Buarque! Não conhece a obra do sujeito! Mas não é só que não conheça a obra. Ele não pensou também nas posições do Chico Buarque, não pensou nas suas próprias questões. Não pensou, inclusive, no contexto em que ele expressou o que estava expressando. Não foi o Chico Buarque que ele apagou ali. Ele apagou da sua vida as pessoas que estavam no restaurante. Ele apagou da sua vida o próprio contexto do restaurante, do lugar onde eles estavam. Noutro contexto em que essa gritaria não estaria sendo valorizada e espetacularizada justamente porque cria um valor, ele estaria com vergonha.

Mas ele só teria vergonha se tivesse um mínimo de reconhecimento do outro.

OP O fascista perdeu a vergonha de ser fascista? Houve um processo de desrecalque
desse fascismo?

Marcia Tiburi – Eu acredito que o fascista perdeu a vergonha em relação ao seu próprio preconceito. Os preconceitos são as sementes de todos os fascismos em todos os tempos. Na base do preconceito, está a negação do outro. Mas, sentimentos como a vergonha barram essa exposição do preconceito. Nesse sentido, a vergonha é um bom sentimento. É um sentimento que permite parar para refletir sobre o que a gente mesmo pensa. Não estou falando de sentir vergonha nesse sentido trivial. Estou falando de vergonha como uma capacidade de não se expor diante do outro. Então, é preciso ter tempo para pensar naquilo que se quer mostrar ao outro. É claro que isso é um aspecto que pode ser discutido e pensado, mas eu diria que fascista é aquele que perdeu a vergonha do seu próprio preconceito. Por quê? Porque ele dá ao seu preconceito um valor de verdade. Todas as pessoas inteligentes têm dúvidas acerca do que pensam, têm dúvidas sobre próprios sentimentos, suas verdades, seus dogmas, das frases feitas, dos clichês, daquilo que é muito corrente. As pessoas inteligentes costumam ter dúvidas. O fascista é aquele que pega a sua burrice e começa a gritá-la como se ela fosse a maior verdade que jamais ninguém teria dito em outro momento. Então, tem essa espetacularização da ignorância e da prepotência, que a gente chama de burrice. Esse é um aspecto importante no fascismo brasileiro contemporâneo. Noutros termos, o fascismo é a personalidade autoritária em funcionamento espetacular.

OP – As redes sociais acentuaram esse tipo de comportamento?

Marcia Tiburi – As redes sociais dão espaço porque são fáceis. O código com o qual a rede funciona é o código verbal e o código verbal bastante restrito. É a fala pronta. A rede social virou uma espécie de cenário espetacular onde quem não tinha nada, não tinha lugar, não tinha reconhecimento, consegue reconhecimento ali. Quaisquer pessoas podem se expressar nas redes. Em princípio, isso é uma coisa muito bonita.

OP É democratizante.

Marcia Tiburi – É, super democrático. O problema é que o democrático e o autoritário muitas vezes se casam. Digamos, há uma espécie de junção dialética. Existe um nexo de produção daquilo que é o seu contrário. Se a gente pensar que democracia é algo superficial, em que basta que as pessoas possam se expressar como querem sem que tenham responsabilidade sobre sua liberdade de expressão, sem que tenham tentado elaborar alguma coisa que faça sentido, alguma coisa que possa ser interessante, viável… Acho que a questão que a gente tem que colocar neste momento é justamente da relação entre esse uso democrático do espaço político e do espaço do político, onde a gente faz transitar nossas opiniões, e um uso que precisa ser ético. Por isso que defendo que nós precisamos voltar à ética. Não dá pra continuar discutindo política sem ética. E quando estou falando de ética não estou falando de moral, moralismo ou valores. Estou falando da recuperação da nossa responsabilidade sobre a construção da esfera pública.
E isso é uma coisa difícil de fazer porque, nessa construção, nós somos movidos por afetos, e se o afeto que está em jogo neste momento é o ódio, nós vamos funcionar na base do ódio. Todos nós estamos contaminados pelo ódio. E falar ódio, e gritar ódio, e dizer coisas em nome do ódio. Isso tudo tem sido muito comum. No entanto, uma pergunta que temos de nos fazer: como nós chegamos a este ponto em relação ao ódio? Como é possível que o ódio tenha se tornado o afeto que regula as
nossas relações?

OP Mas, pensando na tradição autoritária do Brasil, esse ódio sempre esteve
presente ou é algo novo?

Marcia Tiburi – Esses afetos brutos, ódio e amor, estão na base da nossa existência. O ódio é um afeto flutuante, assim como o amor. Ele pode ser restringido ou estimulado. Você pode fomentar o amor, você pode fomentar o ódio. Uma pergunta que a gente tem que se fazer é: por que algumas pessoas são tão suscetíveis ao discurso de ódio e outras, não? Eu acho que nós somos muito sensíveis porque esse lastro institucional, esse lastro político, esse lastro da escola, esse lastro da cultura e da família não está bem construído. Você falou em tradição autoritária. A gente precisaria construir uma tradição democrática, fortalecer a cultura democrática para instaurar uma tradição democrática com a qual nós não estamos acostumados como sociedade. Desde a abertura política que essa vem sendo uma tentativa de muitos brasileiros, de muitas camadas, de muitos grupos, muitos ativistas. Mas é preciso fortalecer a democracia. A democracia é um regime de governo, mas também político. É um regime de pensamento e regime afetivo. E, como regime de pensamento e afetivo, precisa ser intensificada. E se fomenta isso construindo uma sociedade de reconhecimento do outro. Daí a importância, neste momento, dos diversos ativismos, as pessoas lutando por reconhecimento enquanto são minorias.

OP Dois mil e quinze foi um ano marcado por uma série de acontecimentos trágicos. Foi um ano em que a polícia matou muita gente, um ano de catástrofe ambiental e um ano de aumento da descrença num sistema partidário que já vinha ruindo. Como é traçar planos num cenário tão adverso
como esse?

Marcia Tiburi – Talvez 2015 tenha nos deixado com a impressão de que nós chegamos ao fundo do poço e alguns dos episódios do ano dão realmente essa sensação de que chegamos ao fundo do poço e não temos como saltar de volta, como se ficássemos ali, prostrados e sem chances de refazer o futuro. Não quero ser muito pessimista, mas acho que qualquer tentativa de racionalizar os acontecimentos vai ser muito precária perto dos acontecimentos. Como sociedade, nós nos confrontamos com o pior. A catástrofe de Mariana, com seus criminosos não punidos, a catástrofe política do Congresso Nacional, a questão do impeachment (da presidente Dilma Rousseff), que é uma questão aviltante. Não qualquer impeachment é aviltante: a formulação do golpe e o mascaramento dessa orquestração. Há poucos políticos ainda decentes. É um momento de estarrecer. É bem provável que 2016 seja bem parecido com 2015. Sem querer plantar o pessimismo, a gente deveria voltar atrás e repensar sobre o que nós estamos fazendo uns com os outros, o que nós estamos fazendo com os mais próximos, mas também repensar o papel das nossas instituições. Vejo um sinal de esperança no ativismo dos jovens estudantes que tomaram as escolas em São Paulo e noutros estados do Brasil. Nos movimentos de ocupação daquilo que faz sentido. Nisso eu vejo uma luz que tem algo a nos ensinar. Mas, neste momento, eu pararia para olhar a nossa escuridão e para poder pensar a partir disso, no caminho que podemos seguir a partir de uma análise cuidadosa.

OP – Você acredita que há um avanço da agenda conservadora no País?

Marcia Tiburi – A gente nunca teve um Congresso grande coisa. O Brasil, que é um país tão jovem, tem uma história de muitas misérias políticas no século XX. A partir da abertura política, havia pelo menos a defesa da democracia como um valor a ser respeitado e assegurado. Havia, em que pesem os vários exemplos que podemos citar de políticos corruptos e os coronéis, uma certa vergonha. A desfaçatez não era tão declarada como a gente viu neste último ano. Talvez, na história da desfaçatez política brasileira, a desse ano tenha sido a pior de todas. Talvez. O que a gente pode fazer em relação a isso? Intensificar os movimentos sociais e nos engajarmos de alguma maneira para que possamos reconstruir um caminho, que não é o velho caminho dos poderosos no poder. O povo tem que estar no poder. Mas, para que o povo esteja no poder, é preciso que o povo aprenda a se relacionar com a questão política. A questão política não é a questão pura e simples do poder que está acima de nós e sim do poder que está entre nós. Nós temos que nos perguntar: que sociedade nós desejamos construir? E essa questão é complexa. É a questão que nós nos deveríamos colocar. Que sociedade a gente deseja? Essa é uma pergunta revolucionária.

OP – Mas, antes disso, há o aprendizado do diálogo.

Marcia Tiburi – Eu gostaria que a gente pensasse no diálogo não como uma questão abstrata. É bonito dizer diálogo. O governador que manda espancar estudantes em São Paulo é o mesmo em que, na hora em que não tinha mais nada a dizer, cuspiu a palavra diálogo para a imprensa. Diálogo não é uma palavra qualquer. Diálogo é uma prática. Diálogo não pode ser tratado como uma palavra mágica. É uma prática. É a prática do reconhecimento da diferença. Para reconhecer a diferença, eu tenho que aprender a escutar. Para aprender a reconhecer a diferença, preciso aprender a não fazer apenas o que eu quero. Preciso aprender a me apagar para dar espaço ao outro. E isso, para quem almeja o poder, é muito difícil.

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