O desejo em rede

Na prática, temos versão nova do velho conto do vigário, em que a ilusão substitui a coisa

“Catfishing” é a gíria americana para o falseamento de identidade na internet com objetivos emocionais ou amorosos.

Na prática, versão nova do velho conto do vigário, em que a ilusão substitui a coisa. Resume a desventura do jogador de vôlei italiano que namorava online uma mulher, seduzido pelas fotos de uma bela modelo e atriz brasileira, que eram enviadas pela parceira, também italiana, como se fossem as próprias. Até aí, um fait-divers banal. O assombro é que o atleta revelou a prática de relações sexuais satisfatórias, durante 15 anos, com o simulacro.

Nenhuma surpresa para os pesquisadores da cultura da simulação. Apenas nos Estados Unidos são milhares, senão milhões, as pessoas que mantêm esse tipo de relação à distância, convictas de que não se trata de nada estranho à conjunção sexual, pois não existiria prazer solitário quando há dois implicados.

O episódio do italiano, entretanto, é um bom pretexto para se avaliar a extensão dessa forma de vida paralela, que é o ambiente digital ou metaverso: uma variedade de técnicas de visualização de dados, em que se troca o sensório natural (visão, audição, tato) por bytes.

A representação digital de uma coisa é um “token”, a de uma pessoa é um “avatar”. Numa experiência americana recente, uma mulher disse ter sido “apalpada” virtualmente por um estranho.

É que esse tipo de realidade parece verdadeiro.

A imersão na cena projetada cria sensação de presença, de algum modo comparável à tomada de consciência pelo indivíduo da própria existência no mundo real. Não é um processo apenas mental, mas tecnicamente “áptico”, no sentido de perceptivo, auditivo e tátil.

Nas redes se expande uma nova ordem de possíveis, isto é, de “tudo que não repugna existir”, na definição de São Tomás de Aquino.

No citado “catfishing”, um corpo passava por outro, evidentemente mais desejável, produzindo por simulação uma quase-presença erótica. É um “possível”, em que o avatar deseja, e o sexo é vivido como token.

Suponha-se, porém, que o contexto se desloque para a política, levando um provável eleitor, movido por emoções ocasionais, a fundir uma miragem fabricada com a realidade enganosa do candidato. Isso sempre esteve dentro da lógica cínica do “não presta, mas faz”.

O fenômeno não desapareceu e conta agora com o reforço do “catfishing” eleitoral: na rede, a vítima é sexualmente capturada pela fusão da vigarice com a sua própria parte vazia ou podre. O voto pode ser repugnante, mas possível algum prazer, ainda que ao revés de São Tomás.

+ sobre o tema

para lembrar

Batalha jurídica no julgamento de neonazis em Munique

O maior julgamento de neonazis da Alemanha do...

Cavalo de Santo – religiosidade e dignidade Afro-Brasileira

O belíssimo documentário Cavalo de Santo, com direção, roteiro e...

Seminário Racismo, Igualdade e Políticas Públicas

Bom dia a todas e todos. Agradeço inicialmente ao Inesc...

De novo? Boateng sofre insultos racistas, e Juventus pode ser punido no Calcio

Durante clássico na casa da Velha Senhora, ganês sofre...
spot_imgspot_img

Quando Tony Tornado cerra o punho e levanta o braço, a luta dos afrodescendentes se fortalece

Tony Tornado adentrou o palco do Festival Negritudes e, antes de dizer qualquer palavra, ao lado do filho, Lincoln, ergueu o punho direito. O...

‘Redução de homicídios no Brasil não elimina racismo estrutural’, afirma coordenador de Fórum de Segurança

Entre 2013 e 2023, o Brasil teve uma queda de 20,3% no número de homicídios, de acordo com o Atlas da Violência, produzido pelo Fórum...

‘Não aguentava mais a escola’, diz mãe de aluna internada após racismo

A mãe da aluna de 15 anos que foi encontrada desacordada no Colégio Mackenzie (SP), contou ao UOL que a filha segue internada em um hospital psiquiátrico...
-+=
Geledés Instituto da Mulher Negra
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.