Um Natal carioca

O Rio de Janeiro inteiro na quadra do Império Serrano. Aconteceu no domingo, o último antes do Natal 2021, pelas mãos de Carla Aniceto, presidente do Instituto Sol, organização que assiste famílias da comunidade Buriti-Congonha, em Madureira, Zona Norte carioca, uma das capitais do samba na cidade. A temporada de pandemia escancarou desigualdades, catapultou o desemprego, multiplicou a miséria. Mas não matou a festa. Professora, conselheira tutelar, integrante do clã de Aniceto do Império (1912-1993), um dos fundadores da tradicional escola de samba da Serrinha, foi ela que idealizou a ação de apadrinhamento social para oferecer roupa e calçado e brinquedo a 105 crianças e adolescentes do morro.

No Sol, Carla atende com parceiras e voluntários duas centenas de meninas e meninos. Oferecem psicoterapia, exames de vista, orientação sobre primeiros socorros, aulas de capoeira e maquiagem. Desde novembro, a organização abriga uma biblioteca comunitária que leva o nome da jornalista que vos escreve. Para o Natal, a neta de José Aniceto, primo do sambista, estivador e líder do Sindicato dos Arrumadores, tinha ajuda para 51 crianças. Pela rede social, pediu socorro. De uma legião de amigos, surgiram madrinhas e padrinhos para todos os pequenos, de 5 meses a 14 anos.

A festa foi marcada para o domingo, 19, na sede da ONG. Mas tinha uma guerra no meio do caminho. Grupos rivais no tráfico de drogas nos morros da Serrinha e do Cajueiro adentraram em confronto o mês derradeiro de 2021. Tiros durante o dia, toque de recolher no início da noite, famílias expulsas, celebração ameaçada. Quem estendeu a mão foi a escola de Aniceto, Dona Ivone Lara, Mano Décio da Viola, Tia Maria do Jongo, Seu Molequinho, Silas de Oliveira, Arlindo Cruz. Na terreiro histórico, o Natal da Congonha. Um grupo de mulheres madrugou na quadra cedida pela verde e branco para montar a árvore, arrumar a mesa, embrulhar os títulos infantis que o Favelivro ofereceu de presente. Outro time preparou cachorro-quente, fritou pastéis e minichurros, serviu guaraná. O ator Ricardo Tostes, último a encarnar o Rabicó do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” (TV Globo), preparou atividades recreativas de seu projeto Arquitetura da Leitura.

As crianças foram chegando aos poucos, em grupos de três, quatro, cinco, acompanhadas quase sempre por uma solitária adulta, mãe de uma — ou de todas. Duas mulheres carregavam uma criança no colo, outra na barriga. Depois do lanche, abastecidos de açúcar, os miúdos desandaram a correr, num esquenta para a hora dos presentes. Na última hora, um trio de padrinhos improvisou regalo para um menino que apareceu de surpresa — tarefa nada complexa na economia pujante de Madureira às vésperas do Natal. Samuel entrou com a mãe esperando brincar num pula-pula; saiu satisfeito com o kit roupa-tênis-brinquedo-livro. A pequena Pérola completava 2 aninhos e ouviu em coro o “Parabéns a você”.

Uma voluntária com o dom de costura produziu dezenas de máscaras de tecido para proteger as crianças das doenças respiratórias, Covid-19 à frente. A pandemia não acabou, e a cidade enfrenta neste dezembro, além da ameaça da recém-identificada variante Ômicron, uma epidemia de gripe. Meia dúzia de crianças, com sintomas, faltaram à festa. Outro tanto se atrasou, porque o pancadão do baile de sábado na vizinhança inviabilizou a madrugada de sono. Dois meninos gêmeos de 6 anos chegaram tardiamente com o pai, rara presença masculina. Eles perderam a mãe, vítima de câncer, há um ano.

Foi um Natal com a complexidade carioca. Reuniu mães negras provedoras, meninas de infância abreviada pelo cuidado com parentes menores, ausência paterna, dificuldades financeiras, opressão pelo crime, dieta açucarada. A desigualdade brasileira encarnada em Martin, meu neto, acompanhado de mãe, pai, duas avós, um avô. Teve correria de meninos e tombo e gargalhada e refrigerante derramado e papéis desenhados e chupeta e abraço e colo e empurrão e gritaria. E amizade, afeto, solidariedade, conversa, presente, presença, gratidão. Foi a típica festa que espanta a miséria, como ensinou Beto sem Braço (1941-1993), histórico compositor e diretor de bateria do Império Serrano — que estava lá, num imenso painel ao lado do palco.

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