O samba vive

Quem acompanhou o carnaval do Rio voltou para casa sabendo que a festa resiste com bravura

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Foto: Marta Azevedo

Não tema. “A infância está perdida, a mocidade está perdida, mas a vida não se perdeu”, escreveu Carlos Drummond de Andrade (“Consolo na praia”, 1945), sete décadas antes de o desfile de 2016 fazer o que fez com a escola de Padre Miguel. O tal carnaval da crise, que começou com chororô e mimimi, terminou com “bum bum paticumbum prugurundum” (Império Serrano, 1982) histórico a nos aquietar o coração. O samba vive. Viva o samba!

A coluna desta quinta foi escrita e editada horas antes de a banca de julgadores de Liesa e Lierj apresentarem o veredicto dos desfiles da Série A e do Grupo Especial, na Passarela Professor Darcy Ribeiro, nome completo do sambódromo carioca. Este ano, o cenário abrigará, além do maior espetáculo audiovisual do planeta — diria Neguinho da Beija-Flor, 40 anos de passarela e de escola de samba —, competições do maior evento esportivo mundial, os Jogos Olímpicos. Mas o somatório de notas já não importa. É jogo jogado.

A roda da folia girou, e os devotos da religião chamada carnaval podem dormir sossegados. Habemus samba. O mais brasileiro dos ritmos baixou por aqui há um século, muito antes de o país fazer parte do top ten da economia mundial. E sobrevive à inaceitável posição da mesma nação como 75ª no ranking do desenvolvimento humano da Organização das Nações Unidas (ONU).

Quando a ditadura afiava as garras, nos anos 1960, o Rio de Janeiro pariu a Banda de Ipanema, que enfrentou com ousadia e irreverência os anos de chumbo. Em 1989, quando a hiperinflação enfiou a faca no bolso das famílias, e a década perdida se aproximava do fim, Joãosinho Trinta e Laíla produziram o maior desfile da História, “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” (Beija-Flor, 1989). Em 1996, quando a fome envergonhava o país que viria a se tornar celeiro do mundo — que o digam a Vila Isabel de 2013, e a Unidos da Tijuca e a Imperatriz de 2016 —, o Império Serrano (de novo, ele) reverenciou o sociólogo Betinho, que içou o combate à miséria ao topo da agenda política nacional.

Era de se esperar que, num ano nascido sob o signo da recessão, da inflação, do desemprego, da instabilidade política, do caixa esvaziado do setor público, o mundo do samba fizesse sua parte. E fez. e altivez, “Apesar de você”, cantaria Chico Buarque.

No domingo anterior ao feriadão, Madureira ferveu com o bloco Timoneiros da Viola e sua homenagem a Zé Ketti. O subúrbio ainda canta, lembra e valoriza seus mestres. Quando o Rei Momo recebeu do prefeito Eduardo Paes as chaves da cidade, na sexta-feira de carnaval, Dona Ivone Lara se apresentou, Wilson Moreira cantou, Nelson Sargento compareceu. Os três bambas, 263 anos somados, mostraram que o samba tem passado e presente.

E tem futuro. O incansável Mombaça, cantor e compositor, pôs pelo segundo ano seguido o bloco afro Samba Trançado na rua. A menina Karine, um ano e três meses, mal aprendeu a falar, mas sambou e bateu palmas no ritmo dos tambores. A Praça Maracanã, onde começa a Vila Isabel de Noel Rosa, será, de agora em diante, um espaço de resistência do jongo e do samba nas segundas-feiras de folia. Nos últimos domingos de cada mês, quem quiser saber como tudo começou deve passar pela Praça Agripino Grieco, no início do Méier, para apreciar as apresentações de capoeira e jongo do grupo cultural Afrolaje.

O samba vive, porque a Unidos de Vila Isabel, como manda seu hino-exaltação, renasceu das cinzas de um par de desfiles sofríveis e tomou a Sapucaí a plenos pulmões, convocando o povo a dançar o frevo, a ciranda, o maracatu na homenagem a Miguel Arraes. Vive, porque a Viradouro incorporou Ogundana, o alabê de Jerusalém, e deu aula de tolerância e fraternidade entre as religiões.

O samba vive, porque o Salgueiro teve a coragem de abrir e fechar seu desfile com as entidades encantadas da umbanda, historicamente demonizadas por quem rejeita a liberdade de culto e a diversidade de tradições e conhecimentos. Vive, porque a Mangueira, com o enredo sobre Maria Bethânia, lembrou ao Brasil que no coração de quem tem fé cabem Iansã, Oxum, Oxalá — orixás das religiões de matriz africana — e Nossa Senhora, Menino Jesus de Praga, São João Menino — santidades do catolicismo.

O samba vive, porque a Beija-Flor vestiu Selminha Sorriso e Claudinho Souza de colombina e arlequim, e Marcella Alves dançou pelo Salgueiro com figurino clássico, igualmente revivendo antigos carnavais. Vive, porque Squel Jorgea girou com o pavilhão da verde e rosa vestida de iaô, de cabeça raspada e pintada. Vive, porque quando o Rio parecia se acostumar a viver sem o arrebatamento, as arquibancadas, dos setores um ao 13, explodiram em ovação à Portela, maior campeã do carnaval carioca.

Não importam notas, tropeços, crises. O samba vive. Viva o samba!

 

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