Recessão e decisões políticas que não priorizaram os pobres fizeram país retroceder duas décadas, com reedição da campanha da fome
Por Flávia Oliveira Do O Globo
Numa alegoria macabra da crise nacional, o Brasil faz tristemente o caminho de volta em duas décadas e meia de avanço nas políticas de combate à pobreza, na semana em que se completam 20 anos da morte de Betinho. Herbert de Souza foi o ativista que, nos anos 1990, exortou o país a erradicar a fome e a miséria. Neste sábado, 12 de agosto, a Ação da Cidadania, ONG fundada pelo sociólogo, hoje sob o comando de Daniel de Souza, seu filho, ressuscita a campanha de arrecadação de alimentos para famílias vulneráveis. Por desnecessária, a iniciativa fora suspensa em 2005. Volta agora, na esteira da recessão e das decisões políticas que não priorizaram os mais pobres.
“No aniversário de morte de Betinho (9 de agosto), a força do seu chamamento por ética na política e cidadania plena nunca foi tão atual. O aprofundamento das desigualdades e o retorno da miséria extrema é o retrato de um Brasil que tínhamos a esperança de ter superado”, diz Átila Roque, parceiro de Betinho no Ibase, hoje diretor da Fundação Ford no país.
Faz três anos, a FAO, agência da ONU para alimentação, retirou o Brasil do mapa da fome. Desde então, o país retrocedeu. O Centro de Politicas Sociais da FGV) apurou crescimento da proporção de pobres de 8,4% para 11,2% no biênio 2015-16. A estimativa do economista Marcelo Neri — que retornou à Fundação há dois anos, após presidir o Ipea e comandar a Secretaria de Assuntos Estratégicos — é de que 5,9 milhões de brasileiros tenham cruzado de volta a linha da pobreza.
Na Ação da Cidadania, a luz amarela acendeu este ano pelos comitês mantidos em 17 estados e em 22 municípios fluminenses. No Rio, o cenário é agravado pela falência do governo estadual, que tem deixado servidores, aposentados e pensionistas sem renda. O desemprego é agudo e galopante. Ainda ontem, o Ministério do Trabalho informou que, em julho, o estado fechou 9.230 postos de trabalho, enquanto o saldo no país foi positivo em 35.900 e São Paulo gerou 21.805 vagas. “É com grande tristeza e uma enorme sensação de derrota que a gente volta a fazer arrecadação de alimentos. Embora não seja oficial a volta do Brasil ao Mapa da Fome, na prática, isso está acontecendo. É provável que, em outubro, reeditemos o Natal sem Fome”, informa Daniel de Souza.
Foi em abril de 1993 que Betinho lançou a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, um desdobramento da campanha Pela Ética na Política, deflagrada após o impeachment de Fernando Collor de Mello, lembra Roque. País afora, havia formação de comitês, arrecadação de alimentos e distribuição de cestas básicas. No fim daquele ano, o primeiro Natal Sem Fome entregou 580 toneladas de comida a 290 mil famílias.
A erradicação da miséria não saiu mais do radar da sociedade brasileira. Na virada do século, evoluiu para o conjunto de políticas sociais materializadas no Bolsa Família, programa de transferência de renda condicionada à frequência escolar e atenção à saúde. A extrema pobreza arrefeceu e, em uma década, a tecnologia social brasileira virou referência mundial, com acordos de cooperação técnica firmados com Chile, Peru, Uruguai, Egito, Benin, Gana, África do Sul, Angola, Nigéria, Itália e Estados Unidos, entre outros países.
Em 2014, no mais explícito Relatório de Desenvolvimento Humano já feito, o Pnud/ONU alertou para o risco de avanços obtidos com as Metas do Milênio sucumbirem às crises, das flutuações financeiras globais a catástrofes climáticas e fracassos locais. Os países – recomendou o documento assinado por dois ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz e James Heckman – deveriam dedicar mais recursos a serviços públicos básicos, rede de proteção social e políticas de pleno emprego.
O Brasil falhou sob o comando de Dilma Rousseff, que pavimentou a deterioração das contas públicas. Erra no governo Michel Temer, um presidente impopular e afogado na instabilidade. Deu na crise social aguda, hoje evidente na reedição da campanha da fome. É a volta ao começo.