Resta às mulheres e aos homens negros a desobediência de ficarem vivos
Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo
No país em que a morte está se tornando partido político por iniciativa do presidente da República, ficar vivo é ato revolucionário. Desde o início de 2019, são evidentes os sinais de que o Brasil caminha para o Estado de extermínio e impunidade. No Legislativo, tramita o pacote anticrime do ministro Sergio Moro, que pretende instituir redução de pena ou absolvição para homicídios cometidos por agentes da lei sob argumento de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Chamam de excludente de ilicitude, eufemismo para licença para matar. É mecanismo que, aplicado no Rio de Janeiro às margens da legislação pelo governador Wilson Witzel, deu em 1.402 mortes decorrentes de intervenção policial de janeiro a setembro, salto de 18,6% sobre um ano antes. Em 2018, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública contabilizou 6.220 homicídios cometidos por policiais no país, 17 por dia.
Jair Bolsonaro já assinou decretos flexibilizando a posse de armas de fogo e prometeu indulto a policiais “presos injustamente”, seja lá o que isso signifique. Ontem, enviou ao Congresso Nacional projeto de lei para isentar de punições militares das Forças Armadas, policiais federais e integrantes das forças de segurança participantes de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prerrogativa exclusiva da Presidência. A proposta foi anunciada durante o lançamento da Aliança pelo Brasil, partido ao qual pretende se filiar. Por encomenda do deputado estadual Delegado Péricles (PSL-SP), informou o portal UOL, o artista Rodrigo Camacho produziu com quatro mil cartuchos de munição .40, .50, 762 e 556 a marca da legenda.
Sem sutileza materializou-se o Partido da Bala, oficializou-se a necropolítica. É engrenagem para engordar as estatísticas nefastas de um país em que, segundo o Atlas da Violência 2019, publicação oficial do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 65.602 pessoas foram assassinadas em 2017, das quais 72,4% por arma de fogo; 35.785 mortos tinham de 15 a 29 anos; três em cada quatro eram pretos ou pardos. No mesmo ano, 4.936 mulheres foram mortas, 13 por dia, recorde em uma década; duas em cada três eram negras. Entre 2012 e 2017, mais da metade das mulheres (53,8%) foi morta à bala.
Nesse ambiente, resta às mulheres e aos homens negros a desobediência de ficarem vivos. Como ensina a escritora e professora Conceição Evaristo: “Eles combinaram nos matar. Nós combinamos não morrer”. Até ver a fotografia da logo construída com balas, eu escrevia sobre o pacto de existência firmado por ancestrais sequestrados de África e escravizados no Brasil, mas que hoje vivem no DNA dos 55,8% de brasileiros que se declararam pretos ou pardos. Refletia sobre isso após produzir uma resenha sobre “Escravidão”, primeiro volume da nova trilogia do best-seller Laurentino Gomes.
O livro enfileira histórias, estatísticas, imagens e mapas dos três séculos e meio de brutalidade que forjaram o Brasil — e ainda o habita. Por falta de documentos e evidências físicas, personagens tornados heróis do povo negro, como Dandara e Zumbi dos Palmares, têm a existência contestada. Entre africanos e indígenas a transmissão oral de conhecimento é tradição, mas a História oficial, ditada e escrita pelos colonizadores europeus, põe em dúvida o que não foi impresso. É cultura que não dialoga com o vento, despreza o invisível, ignora o encantamento, só existe na matéria.
Talvez por isso, o povo preto tenha aprendido a falar e ler e escrever e publicar em português. Figuras desconhecidas até outro dia provaram-se protagonistas da trajetória de luta por liberdade e direitos, a partir de investigações científicas e produção acadêmica que resgataram textos, fotos, restos mortais. E renderam livros, espetáculos teatrais, documentários, revitalização de cidades. Que o digam o Cais do Valongo e a Pequena África, Luíza Mahin e Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis, os irmãos Antonio e André Rebouças, Machado de Assis.
Falta à gente preta assegurar a permanência. No Estado de extermínio, ela se dará com lápides gravadas com nomes, sobrenomes, datas de nascimento e de morte. Nossos túmulos serão provas inequívocas da matança de nossos jovens e da teimosia dos anciãos que alcançarem a longevidade. Os escafandristas saberão decifrar o que o Brasil fez com seus filhos. E o que eles sempre fizeram para existir.