No dia 29 de agosto de 1831, o jovem Charles Robert Darwin, então com 22 anos, recebeu uma carta que mudaria sua vida. Um de seus professores na Universidade de Cambridge, o botânico John Stevens Henslow, indicara seu nome para participar de uma expedição científica ao redor do mundo.
O governo britânico, explicava a carta, faria um levantamento cartográfico da costa da América do Sul e pedira a ele que recomendasse alguém para atuar como naturalista. Sua missão a bordo seria observar, registrar e coletar tudo o que achasse interessante, incluindo fauna, flora e geologia, nas terras visitadas pelo navio.
Henslow escolheu Darwin por ser quatro anos mais novo que o capitão Robert FitzRoy, de 26. “Darwin não tinha aptidão para a medicina, nem interesse pelo sacerdócio. Mas, depois de ler a obra do naturalista alemão Alexander Von Humboldt, adotou a história natural como ‘hobby’ e aceitou embarcar na missão”, explica a física Silvia Moreira Goulart, doutora em História da Ciência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Não foi fácil convencer o pai do rapaz, Robert, a deixá-lo viajar. Mas, com a ajuda de um tio, Josiah, o patriarca da família não só reconsiderou sua decisão, como aceitou custear as despesas do filho. Consentimento dado, o navio inglês H.M.S. Beagle zarpou de Devonport, no distrito de Plymouth, no sul da Inglaterra, em 27 de dezembro de 1831.
“A viagem do Beagle foi, de longe, o acontecimento mais importante na minha vida”, escreveu o pai da Teoria da Evolução na autobiografia editada por seu filho, Francis, em 1887. “As maravilhas dos trópicos erguem-se hoje em minha lembrança de maneira mais vívida do que qualquer outra coisa”.
Prevista para durar pouco mais de três anos, a viagem de circum-navegação levou quase cinco. Nesse período, a tripulação do Beagle enfrentou abalo sísmico no Chile, doença misteriosa na Argentina — alguns especialistas cogitam a hipótese de Doença de Chagas — e tempestade tropical no Brasil.
Sim, o Brasil estava entre os mais de dez países, como Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, visitados pelo navio de pesquisa da Marinha Real Britânica — o HMS, a propósito, significa His Majesty’s Ship (“Navio de Sua Majestade”) —, ao longo de quatro anos e nove meses.
“Por um lado, Darwin ficou encantado com a nossa biodiversidade. A Mata Atlântica foi o bioma mais rico que ele conheceu. Por outro, ficou revoltado com a escravidão. Sua família lutava contra o comércio de escravos”, afirma o biólogo Nélio Bizzo, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Darwin – Do Telhado das Américas à Teoria da Evolução (2009).
Tem inglês no samba
O navio chegou a Salvador (BA) em 28 de fevereiro de 1832. Antes de ancorar na Bahia, passou pelos arquipélagos de São Pedro e São Paulo, a 1.000 km de Natal (RN), e de Fernando de Noronha, a 345 km de Recife (PE). Já no primeiro dia de sua estadia no Brasil, Darwin encantou-se com a exuberância da floresta tropical. “Luxuriante” foi um dos adjetivos que usou para descrever a paisagem local.
“O dia passou deliciosamente”, escreveu no diário que levou a bordo. “Delícia, no entanto, é um termo vago para exprimir os sentimentos de um naturalista que, pela primeira vez, se viu perambulando por uma floresta brasileira.”
Em terra firme, o jovem cientista gostava de embrenhar-se pelas matas úmidas e coletar bichos, plantas e rochas. A cada novo porto onde o Beagle atracava, Darwin enviava suas amostras, desidratadas ou conservadas em álcool, aos cuidados de seu tutor, John Henslow, em Londres. Ao todo, catalogou mais de 5,4 mil peças, entre espécies fósseis e espécimes preservados.
“Seus professores em Cambridge recebiam o material e distribuíam-no entre os maiores especialistas da época. Resultado: ao voltar à Inglaterra, em 1836, Charles Darwin já era um cientista famoso”, observa a geóloga Kátia Leite Mansur, doutora em Geologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do projeto turístico-científico Caminhos de Darwin, que mapeou a região por onde o naturalista passou em sua expedição pelo interior do Rio de Janeiro.
Na Bahia, a estadia foi relativamente curta: 18 dias. Tempo suficiente para Darwin testemunhar uma tromba d’água, sofrer um corte no joelho — que lhe deixou de molho por seis dias — e brincar de carnaval pelas ruas de Salvador. Bem, brincar não é exatamente a palavra.
Hospedado no Hotel do Universo, no antigo Largo do Theatro (atual Praça Castro Alves), Darwin teve, no dia 4 de março de 1832, uma segunda-feira de Carnaval, a infeliz ideia de passear pela cidade.
Infeliz porque um dos passatempos dos foliões era arremessar “bolas de cera cheias de água”, apelidadas de “limões de cheiro”, nos incautos transeuntes. De quebra, ainda lambuzavam suas roupas com sacos de farinha. “Difícil manter nossa dignidade”, resmungou, em seu diário.
O desagrado com a burocracia – e com os brasileiros
De Salvador, o capitão FitzRoy seguiu para o Rio de Janeiro, onde chegou no dia 4 de abril. Dessa vez, passou mais tempo: 93 dias. “Em maio de 1832, Darwin escapou da morte ao se recusar a participar de uma caçada no rio Macacu, que deságua na Baía de Guanabara. Três dos marinheiros que participaram da caçada morreram vítimas de uma febre fulminante”, relata o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Na cidade, o naturalista fixou residência em Botafogo, aos pés do Corcovado. Apenas dois dias depois de sua chegada, não disfarçou seu aborrecimento ao tecer críticas à burocracia local. Segundo consta em suas anotações, Darwin levou um dia inteiro até conseguir autorização para excursionar pelo interior fluminense.
“Nunca é agradável submeter-se à insolência de homens de escritório, mas aos brasileiros, que são tão desprezíveis mentalmente quanto são miseráveis as suas pessoas, é quase intolerável”, reclamou, em 6 de abril de 1832. “Contudo, a perspectiva de florestas selvagens zeladas por lindas aves, macacos e preguiças fará um naturalista lamber o pó da sola dos pés de um brasileiro”.
“Ao desembarcar em Salvador, a relação de Darwin com o Brasil era positiva. Mas, ao chegar ao Rio, pareceu azedar. Darwin reclama muito da burocracia e chega a dizer que é interminável”, diz o biólogo Charbel El-Hani, coordenador do Laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
A cavalo, Darwin e uma comitiva de seis homens empreenderam uma viagem de 16 dias, entre 8 e 24 de abril, até Conceição de Macabu, a 227 km da capital. De maneira geral, a impressão deixada pelos donos de pousada não foi das melhores. Alguns demoravam até duas horas para servir a refeição. “A comida estará pronta quando estiver”, respondiam os mais atrevidos. Outros, sequer, tinham garfos, facas ou colheres para oferecer.
Na Fazenda Campos Novos, em Cabo Frio, os viajantes deram pela falta de uma bolsa com alguns de seus pertences. “Por que não cuidam do que levam?”, retrucou o hospedeiro, mal-humorado. “Talvez tenha sido comida pelos cachorros”.
Escravidão, nunca mais
Darwin tinha 22 anos quando recebeu uma carta que mudaria sua vida: era um convite para uma viagem à América do Sul
Em sua travessia pelo norte fluminense, Darwin deparou-se também com os horrores da escravidão. Dois episódios lhe marcaram profundamente. Um deles aconteceu na Fazenda Itaocaia, em Maricá, a 60 km do Rio, no dia 8 de abril, quando um grupo de caçadores saiu no encalço de alguns escravos. A certa altura, os foragidos se viram encurralados em um precipício.
Uma escrava, de certa idade, preferiu atirar-se no abismo a ser capturada pelo capitão do mato. “Praticado por uma matrona romana, esse ato seria interpretado como amor à liberdade”, relatou Darwin. “Mas, vindo de uma negra pobre, disseram que tudo não passou de um gesto bruto”.
O outro episódio ocorreu na Fazenda Sossego, em Conceição de Macabu, no dia 18. Um capataz ameaçou separar 30 famílias de escravos e, em seguida, vendê-los separadamente como forma de punição. Darwin ficou tão indignado com a cena que a descreveu como “infame”.
“Os avós de Darwin participaram ativamente dos movimentos abolicionistas do século 17. Desembarcar em um país onde ainda vigorava o comércio de escravos foi um choque para ele. Darwin chegou a se desentender com o capitão do Beagle sobre o assunto e, por muito pouco, não voltou mais cedo para a Inglaterra”, explica a bióloga Maria Isabel Landim, doutora em Biologia pela USP e organizadora de Charles Darwin – Em um Futuro Não Tão Distante (2009).
Não bastassem os maus-tratos aos escravos, Darwin também se escandalizou com a corrupção. No dia 3 de julho, chegou a rotular os brasileiros de “ignorantes”, “covardes” e “indolentes”.
“Até onde posso julgar, possuem apenas uma fração daquelas qualidades que dão dignidade ao homem”, queixou-se. “Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que, em pouco tempo, ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados.”
Adeus também foi feito pra se dizer
A primeira parte da passagem de Darwin pelo Brasil chegou ao fim em 5 de julho de 1832. Daqui, a expedição seguiu para o Uruguai e, de lá, para a Argentina. Em setembro de 1835, chegou às Ilhas Galápagos, no Oceano Pacífico, o ponto mais famoso da viagem.
Darwin não teria colocado mais os pés no Brasil se, em agosto de 1836, ventos contrários não tivessem obrigado o capitão FitzRoy a atracar novamente no país: de 1 a 6 de agosto em Salvador e de 7 a 12 no Recife. Apesar de agnóstico, Darwin deu “graças a Deus” por estar, finalmente, deixando as costas do Brasil. “Espero nunca mais visitar um país de escravos”, escreveu no dia 19 de agosto.
O Beagle retornou à Inglaterra no dia 2 de outubro de 1836. Vinte e três anos depois, em 24 de novembro de 1859, seu tripulante mais ilustre publicaria A Origem das Espécies. Mas, será que a viagem exerceu algum tipo de influência sobre a obra?
Na opinião dos especialistas, a passagem de Darwin pelo Brasil foi mais importante para a Teoria da Evolução das Espécies do que podemos imaginar. O próprio Darwin é o primeiro a admitir isso. Logo no primeiro parágrafo da introdução, reconhece a importância da expedição para a elaboração de uma das mais revolucionárias teorias da ciência moderna.
“A natureza brasileira, com sua grandeza e diversidade, teve um impacto muito grande sobre Darwin e sua Teoria da Seleção Natural”, afirma a bióloga Magali Romero Sá, vice-diretora de pesquisa e divulgação científica da Fiocruz, e curadora da exposição Darwin – Origens & Evolução, que reúne 295 peças, entre fotos, documentos e fósseis. Ildeu de Castro Moreira assina embaixo: “A passagem de Darwin pelo Brasil foi o passo inicial que o levou, anos depois, a desenvolver A Teoria da Seleção Natural”.
O diário de bordo e as anotações de viagem de Darwin, ricos tanto em descrições geográficas quanto em comentários sociológicos, não se perderam no caminho. Em 1839, viraram livro, Viagem de Um Naturalista ao Redor do Mundo, e, em 2015, ganharam uma edição brasileira, O Diário do Beagle, um calhamaço de 528 páginas lançado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Já o capitão FitzRoy, que comandou o Beagle em duas de suas três viagens, teve um fim trágico. Aos 59 anos, endividado e sofrendo de um transtorno mental, tirou a própria vida, cortando a garganta com uma navalha.
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