O Dia da Consciência Negra tem História

Desde 16 de setembro, toda quarta-feira, chego animada ao Portal Geledés. Leio episódios do Brasil sobre os quais nunca ouvi. Dedico tempo aos detalhes de imagens a que nunca tive acesso, mas de cuja existência nunca duvidei. Não era porque uma perspectiva negra não estava nos livros didáticos, nas aulas de história ou nos relatos de minha família que ela não existia. Bastava procurar.

E então meu primeiro encontro aconteceu no Irohin – Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-brasileira, no centro de Salvador, em julho de 2018. Acolhida pelo professor Edson Cardoso, pude observar alguns dos panfletos, cartazes e jornais publicados pelo movimento negro nos 45 anos anteriores. Mais do que prova de que minha intuição de menina estava certa, foi um incentivo a vasculhar arquivos e me dedicar ao aprendizado sobre memória.

Por mais que tenha defendido um doutorado em ciência da informação e lidado com fontes documentais primárias, a jornalista que vive em mim adora encontrar materiais já lapidados por quem realmente entende de documentos. Imagine então minha alegria em poder, toda semana, acessar, no Portal Geledés, a coluna “Nossas Histórias”, produzida pela Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, em parceria com o Acervo Cultne.

Sociedade Protetoras dos Desvalidos. O medo e as consequências da Lei do Ventre Livre. Herança e laços de solidariedade entre mulheres negras no período escravista. Clubes Sociais Negros. Escola agrícola e reconhecimento de quilombo no recôncavo baiano. Uma fartura de informações e referências.

Não era porque uma perspectiva negra não estava nos livros didáticos, nas aulas de história ou nos relatos de minha família que ela não existia. Bastava procurar

E nesta semana de consciência negra, sob a mesma curadoria da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, Geledés – Instituto da Mulher Negra, em parceria com Acervo Cultne e Google Arts & Culture, inaugura a exposição on-line “1970-1980: Nacionalização do Dia da Consciência Negra no Brasil”. Passeio imperdível para quem quer desviar das infrutíferas e mal intencionadas perguntas sobre a consciência humana sem se expor ao coronavírus que tem contaminado mais e mais pessoas a cada dia (Se puder, fique mesmo em casa! E sem receber amigos. A pandemia está se agravando novamente.).

Ligue o som e desfrute.

Do Grupo Palmares de Porto Alegre, onde o poeta Oliveira Silveira era um dos que retomavam a figura de Zumbi como expressão negra de resistência ao racismo, uma série de ações se espalharam pelo Brasil, reafirmando o Quilombo dos Palmares como memória e desejo de liberdade. Ao conhecer mais detalhes da década, pode-se ouvir, na voz de Leonardo ngelo da Silva, o poema “Canto dos Palmares”, de Solano Trindade:

“Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!”

Cartaz do então Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que depois se tornou o MNU, de 20 de Novembro de 1978. Páginas do Jornegro com informações sobre Palmares. Resgistros do Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu) reafirmando o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. Lançamento dos Cadernos Negros. Subida coletiva de mais de mil militantes à Serra onde viveu Zumbi, com a foto histórica que Januário Garcia fez de Abdias do Nascimento beijando o chão de Palmares. “Marcha Zumbi está vivo”. Monumento a Zumbi no Rio de Janeiro. Marcha da Falsa Abolição, em 1988. Criação do “Parque Histórico Nacional – Memorial Zumbi”, no sítio histórico da Serra Barriga, no município de União dos Palmares, em Alagoas.

Para o 20 de novembro ser Dia Nacional da Consciência Negra, muita pesquisa histórica, reflexão, debate político, planejamento e ação coletiva foi necessária. E podemos acessar essa multiplicidade do computador ou do celular, sem sair de cada.

A exposição “1970-1980: Nacionalização do Dia da Consciência Negra no Brasil”, que estará disponível online apenas até dezembro, é parte da série “Nossas Histórias: vidas, lutas e saberes da gente negra”, realizada por Geledés, Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, Acervo Cultne e Google Arts & Cultur . Serão cerca de 24 outros painéis, até novembro de 2021, com histórias individuais e coletivas, revoltas, abolicionismos, intelectualidades, imprensa e associativismo negros.

A cada 20 de novembro, celebramos e celebraremos Zumbi dos Palmares e seu legado de luta atualizado nos movimentos negros. Nossos passos vêm de longe e não é qualquer secretário a serviço da supremacia branca que vai nos intimidar.

Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de ‘Quando Me Descobri Negra’. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos

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