O dia em que eu deixei de acreditar na Justiça foi o dia em que advoguei em prol de uma criança vítima de estupro

John Godfrey Saxe dizia que as leis, como salsichas, deixarão de inspirar respeito na proporção em que soubermos como são feitas – a frase passou a ser atribuída a Otto von Bismarck em meados de 1930, como bem observou Fred R. Shapiro em 21 de julho de 2008, no New York Times. Gosto de pensar que Godfrey não se referia apenas ao Legislativo e suas conclusões à meia-noite, mas ao sistema jurídico como um todo.

Por Israel Carvalho Jr, do Não Me Kahlo

Foto:@ ARTSY SOLOMON

Pois então, o dia em que eu deixei de acreditar na Justiça tem a ver com uma decisão de primeira instância, em uma Vara da Infância e da Juventude. Começou com um telefonema, de uma mãe que me pedia para recorrer de uma decisão que a seu ver seria absurda.

Eu ainda não era advogado do caso e se tratava de um processo de destituição do poder familiar, aforado em meados de 2014. Quando eu desliguei o telefone, pensei que a mãe certamente tinha entendido algo errado. Um juiz da infância só tomaria uma decisão favorável ao genitor contra quem se busca a destituição se a questão fosse óbvia, afinal, o juiz certamente já ouviu falar do princípio constitucional da proteção integral do menor e do adolescente.

Procuração assinada no mesmo dia, uma sexta-feira, fui ao fórum, peguei o processo de 550 páginas em 3 volumes. Quarenta e cinco minutos depois, a mãe já não me parece mais tão desarrazoada.

Paloma* tem 11 anos. Foi abusada sexualmente pelo pai desde os 7, depois que a mãe dele se separou e começaram as visitas. Demorou alguns meses para Paloma entender o que estava acontecendo, mas, quando entendeu, de imediato contou à mãe, que procurou a delegacia para registrar boletim de ocorrência.

A Justiça foi rápida. Deferiu medida provisória de afastamento e suspensão do poder familiar em relação ao pai [1]. Isso tudo em 2013. A criança, vítima, foi revitimizada outras 3 ou 4 vezes, chamada em juízo para relatar novamente sobre como o pai lhe fizera isso e aquilo, forçada a reviver, tantas vezes, suas agruras e dores.

Simultaneamente, o pai respondia a um processo criminal. Contudo, em dezembro de 2016 veio o que a gente já espera da justiça criminal em caso de crimes sexuais: absolvição por falta de provas.

Tendo-se por redimido, o pai solicita na justiça da infância que seja reabilitado ao convívio com a filha. Após o parecer favorável do membro do Ministério Público, a Justiça defere o pedido.

Muitos devem estar se perguntando o porquê do meu espanto, correto? Ora, se o pai foi absolvido criminalmente, tem mesmo que ser restituído em seus direitos… Mas não é assim que funciona ou – ao menos – que deveria funcionar. Isso porque a Justiça Criminal trabalha com juízo de certeza. Ou seja, o réu deve ser condenado quando provado que praticou o crime de forma dolosa (ou culposa, quando a lei admite), sem que nenhuma excludente possa ser invocada, e presentes os pressupostos da culpabilidade. Qualquer primeiranista conhece a expressão in dubio pro reo, que quer significar: na dúvida, decide-se a favor do réu.

A absolvição do pai se deu por esse motivo, com invocação expressa do in dubio pro reo. Não foi proferido nenhum juízo de certeza, como se teria caso provado que o pai não foi o autor do crime, ou que o crime não ocorreu ou que o fato não seria crime.

A absolvição por falta de provas é espécie de absolvição que dizemos não fazer “coisa julgada” no cível. Dessa forma, não vincula outros juízes, permitindo que decidam de forma diversa em processos não penais [2].

Suponha-se que determinado sujeito acusado de ter atropelado uma pessoa à meia-noite na principal avenida da cidade seja absolvido por falta de provas. Sabe-se lá por que o Ministério Público não arrolou uma testemunha e o juiz criminal entendeu que não ficou provado ser ele o autor do crime. Nada impede que a vítima, em uma ação de indenização – não mais na esfera criminal, mas na esfera cível -, traga uma testemunha que não foi ouvida no processo criminal, e o juiz do cível condene o autor ao pagamento da indenização. Isso é possível de ocorrer pelo princípio da independência das instâncias. Dessa forma, não havendo juízo criminal de certeza, os demais juízes estão livres para a apreciação da matéria.

Mencionei anteriormente o princípio da proteção integral do menor (criança ou adolescente). É aqui que cabe invocar tal princípio: se na instância criminal a dúvida gera benefícios ao réu, na justiça da infância a dúvida beneficia o menor. Na dúvida, protege-se a criança. A Justiça da Infância e Juventude não é sobre o melhor interesse do pai ou da mãe, mas do menor! É em torno dele que devem girar as discussões. Busca-se, aqui, a solução que melhor atenda aos interesses da criança ou do adolescente.

Agora, a insatisfação da mãe já não era sem razão! O pai não foi absolvido porque seria inocente, mas porque não conseguiram, em outro processo, provar a sua culpa para além de qualquer dúvida. Em outras palavras: ninguém disse, até agora, que a criança não sofreu o abuso ou que esse pai não o praticou!

Ademais, o abuso ocorreu e está provado nos autos. O laudo médico é de clareza meridiana.

A dúvida é sobre quem teria cometido o abuso. E se essa dúvida transpareceu no processo penal, no da infância não se pode dizer o mesmo! Todos os laudos produzidos pela psicóloga e pela assistente social são no sentido de que a violência ocorreu e que o pai é o responsável. A absolvição criminal, assim, não representa mais do que nada! Não deveria sequer ter sido levada em consideração na mitigação das medidas protetivas deferidas em favor da criança.

Mas assim foi… Foi deferida a reaproximação pleiteada pelo pai.

Fiz o recurso no final de semana e distribuí na segunda-feira, 12 de junho. O processo foi concluso ao Relator e lá está desde então. No final de semana a mãe de Paloma me ligou, dizendo que recebeu notificação para levar a menina ao Conselho Tutelar para ser visitada pelo pai.

Liguei no Tribunal, pedi para falar no gabinete do Desembargador, expliquei ao assistente a urgência do caso, peticionei juntando cópia da notificação e solicitei que fosse analisado com urgência o pedido de efeito suspensivo. Já se passaram sete dias desde a interposição do recurso. Até agora não se ouviu uma só palavra da Justiça.

Escrevo isso no dia que Paloma terá que visitar seu pai. Daqui a cinco horas ela sofrerá uma violência que nenhum de nós pode sequer imaginar. Será forçada pela Justiça, a quem recorreu em busca de proteção, a ficar no mesmo ambiente que o seu algoz. O setor técnico não foi chamado a se manifestar sobre a conveniência da medida. Paloma não foi ouvida, como manda o Estatuto.

Mulher nenhuma merece sofrer tamanha violência. Pessoa nenhuma merece ser tratada com tamanho descaso e desdém.

Hoje é o dia em que, junto com Paloma, deixo de acreditar na Justiça. Como disse há alguns dias, não há nada mais desesperador para o advogado do que se deparar, ao mesmo tempo, com o erro judiciário e uma justiça quasimodal, paquidérmica, incapaz de rever a tempo decisões absurdas e gravíssimas para o jurisdicionado.

Deixo abaixo a imagem da escultura do dinamarquês Jens Galschiot, em que se vê a Justiça como uma velha gorda com uma balança na mão, menor que seus volumosos seios, carregada sobre os ombros de famélico cidadão, de estatura bem menor que o cajado que a pesada senhora segura e que lhe sustenta. Tudo é maior que o cidadão, menos a balança, é claro. E quanto ao cajado, este é o Estado, que sob o olhar do famélico por justiça, está próximo, mas ao mesmo tempo, segurado pela gorda senhora, parece distante.

*Paloma é um nome fictício, com a finalidade de proteger a identidade da menor.

Israel Carvalho Jr. é formado em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (U.E. Lorena) em 2014, e advogado desde então na Valle e Azen Sociedade de Advogados, em Aparecida/SP. Antes disso, estagiário no Gabinete da 2ª Vara Cível da Comarca de Aparecida, responsável pelo julgamento das causas referentes à Infância e Juventude, dentre outras.

[1] A suspensão do poder familiar é uma restrição no exercício da função dos pais, estabelecida por decisão judicial e que perdura enquanto for necessária aos interesses do filho. De acordo com o artigo 1.637 do Código Civil, “se o pai ou a mãe abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a ele inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.”

[2] Arts. 65 a 67 do Decreto-Lei 3689/41, CPP.

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