O dia em que me descobri uma mulher negra… e bonita

Depois de assistir à peça Pentes e participar da Marcha das Mulheres Negras, não poderia falar sobre outra coisa nesse Dia da Consciência Negra do que minha experiência como mulher negra. Muitas memórias vieram à minha mente e eu acho importante compartilhá-las, porque sei que muitas outras mulheres negras passaram (e ainda passam) pelas mesmas coisas que eu escreverei aqui.

Por Joceline Gomes Do Favela Potente

Eu tinha seis anos. Minha mãe tinha me dado banho e estava secando meu cabelo. Vendo a dificuldade dela de secar aquele cabelo crespo, soltei: quando eu crescer, vou fazer uma plástica pra ficar igual a ranger rosa. Na minha cabeça infantil eu podia fazer uma plástica e mudar tudo em mim: cabelo, nariz, boca, barriga, tudo que me incomodava. Até a cor da minha pele. Eu não me via negra e minha família não falava sobre isso também. Meus pais são maranhenses, estado com maior número de comunidades quilombolas do Brasil, porém, a família não se reconhecia como negra, consequentemente, eu também não. Pra mim, era uma questão de plástica pra eu virar aquela ranger rosa maravilhosa. Era uma coisa fácil de “resolver”, apesar de eu não saber porque isso precisava ser “resolvido”.

Eu tinha onze anos. Tinha duas professoras negras na sexta série: Luzia e Stella. Stella era alta, cabelos curtos e alisados. Luzia era baixinha, gordinha e tinha sardas no rosto. Luzia devia ter uns 40 anos. Stella era mais nova, aparentava ter 30. Stella me dizia que eu ia ter um grande futuro. Falava pra eu fazer o vestibular, que a Universidade de Brasília (UnB) me esperava e eu concordava com tudo, mesmo sem saber o que era vestibular. Na minha família, “terminar os estudos” significava concluir o ensino médio. Mas o dia que mais me marcou foi um dia de junho, que a escola estava toda enfeitada pras festas juninas, e eu recebi o único correio elegante que já recebi na minha vida. Ele dizia: “Joceline, você é linda. Você tem um futuro brilhante. Que Deus te abençoe e te mantenha assim”. Assinado: Prof Luzia. Todo mundo me zuou. Mas eu nem me importei. Alguém me achava bonita além da minha mãe. Na época eu não percebi, mas hoje compreendo que ela, como mulher negra, precisava me empoderar naquele espaço que me discriminava e no qual éramos poucas. As revistas femininas não nos acham bonitas. A TV não nos acha bonita. Os menininhos da escola não me achavam bonita. Mas minha professora sim. Ela sabia o peso dessas palavras, que me confortaram e que fazem eco na minha mente até hoje.

Eu tinha 20 anos. Fui a São Paulo pela primeira vez. Fui pra balada de casaco comprido, coturno, calça jeans, camiseta preta, óculos e chapéu. Lá dentro, sem o casaco, um cara chegou em mim e disse: você é tão bonita, por que se esconde tanto? A primeira reação foi me defender: é meu estilo. Mas aquilo me fez pensar. Realmente eu me escondia. Não falo tanto do corpo, porque o estilo eu meio que mantive, mas adicionei algumas cores e nuances, mas meu cabelo tava sempre dentro de alguma coisa: chapéu, boina, touca, alisamento… no último semestre da faculdade resolvi parar de alisar. E a transição foi difícil. Mas tudo que eu mais ouvia era: ta melhor assim. Meu cabelo. Aquele inimigo público que já teve três pessoas penteando ao mesmo tempo estava melhor do jeito que ele era e nasceu pra ser: crespo. Parei de alisar e comecei a relaxar. Pros cachos ficarem mais “soltos” e “domados”, sabe como é? Sabe como é? Afinal, meu cabelo natural pode ser melhor. E nada melhor do que ter “cachos perfeitos”.

Tenho 28 anos hoje. Não aliso nem relaxo mais o cabelo. Não tenho mais vergonha do meu corpo. Uso mais cores, mais decotes, mais turbantes, mais leggings, e sei que minha pele, meu cabelo são parte de quem eu sou. E eu amo cada aspecto de quem eu sou. Nunca ouvi tantos elogios na minha vida. Aceitar-se e reconhecer-se parte de uma luta histórica, dentro de um grupo social estigmatizado e discriminado e ter a consciência negra de seu potencial nos torna mais capazes de reconhecer até mesmo as sabotagens que fazemos à nossa própria autoestima. Em 2015, eu me descobri bonita. Não exótica, não diferente, bonita. E isso ninguém tira mais de mim. Tantos anos me escondendo, me envergonhando, me esgueirando pelos cantos, me fazem hoje uma pessoa consciente das violências simbólicas a que fui submetida. E agora eu não me defendo mais. Agora, quando dizem que eu sou bonita, só agradeço. E quem me acha arrogante ou qualquer coisa por isso, só digo uma coisa: você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui.

*Joceline Gomes é jornalista, negra, do cabelo crespo, aprendeu a fazer turbante e não relaxar o cabelo no Latinidades, e hoje gosta de conversar com outras mulheres sobre esses assuntos.

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