Quem caminha pelas grandes cidades europeias nos últimos dias descobriu algo que desconheciam: o barulho de seus passos. A quarentena de milhões de pessoas transformou Paris, Roma, Madri, Barcelona e tantas outras metrópoles. E gerou algo inédito em um período de paz: o eco do silêncio.
Por Jamil Chade, Do UOL
No lugar de ruas lotadas, movimento e turistas, espaços vazios, parques fechados e até a benção de um papa a uma praça vazia.
Pode-se ouvir os pássaros apaixonados da primavera e não faltam relatos de como certos animais selvagens passaram a se aventurar por locais inesperados. O silêncio, porém, não é de paz. Mas um silêncio pesado, de inquietação. De incerteza.
Um aspecto inesperado da pandemia tem sido a transformação sonora de cidades. Em Paris, a agência que mede a poluição sonora, a Bruitparif, descobriu uma queda no registro de decibéis em todos os seus 150 locais de registro.
Nas proximidades de grandes aeroportos como Charles de Gaulle ou Orly, o desaparecimento de centenas de vôos transformou a paisagem sonora. Também pesou a interrupção de obras pela cidade, a queda na circulação de carros ou da abertura de cafés. Em algumas ruas, a queda de decibéis foi de 90%.
Especialistas, porém, apontam que não há exatamente um silêncio. Mas a transformação do panorama acústico e a volta dos sons da natureza. Uma das descobertas de muitos moradores de grandes cidades europeias foi a volta do canto dos pássaros.
O silêncio inesperado criou uma situação acústica inédita, o que começa imediatamente a ser aproveitado por pesquisadores para experimentos científicos que jamais imaginaram que poderiam realizar em grandes cidades. Uma das experiências sendo conduzidas se refere ao comportamento dos animais diante da redução drástica do som de seus maiores predadores: os humanos.
Algumas projeções da Organização Mundial do Turismo apontam que, em 2020, o número de turistas no planeta pode cair em 30%. Mas, em algumas regiões, eles já desapareceram por completo e o impacto tem sido nítido.
Taxas de poluição desabaram, canais de Veneza voltaram a ficar transparentes – depois de décadas – e o trânsito desapareceu.
Os cenários ficam ainda mais contraditórios quando se percebe que, na Europa, o sol da primavera desembarca especialmente radiante nos últimos dias, depois de longos meses de um inverno rigoroso.
Saudade do abraço
Entre especialistas, porém, o temor é de que o confinamento se transforme em um problema de saúde mental. Poucas são as cenas hoje de pessoas cantando nas varandas de suas casas, enquanto na Espanha e Itália os corpos de milhares de pessoas se acumulam.
Para o presidente da Federação Internacional da Cruz Vermelha, Francesco Rocca, famílias precisam não apenas de remédios ou alimentos, mas também de apoio especializado em questões psico-sociais. “Isso tudo é novo para milhões de pessoas”, indicou.
“Na semana passada, uma de minhas funcionárias na Itália se aproximou e me disse que sua mãe tinha falecido. Ela chorava. Estávamos dois metros de distância e eu não pude sequer me aproximar para abraçar, que é nossa reação normal para dar conforto. Vamos sentir saudades de um abraço”, disse. ?”Crescemos abraçando. Podemos abraçar quando estamos com medo. Por isso, precisamos que as populações tenham esse apoio de saúde mental”, defendeu.
Outra preocupação se refere à possibilidade de um salto nas taxas de violência doméstica. O eco do silêncio nas ruas corre o risco de ser o do sofrimento dentro de quatro paredes.
Para relatores da ONU, as medidas restritivas adotadas mundialmente para combater o vírus intensificam o risco de violência doméstica.
“É muito provável que as taxas de violência doméstica generalizada aumentem, como já foi sugerido pelos relatórios iniciais da polícia. Para muitas mulheres e crianças, o lar pode ser um lugar de medo e abuso. Essa situação piora consideravelmente em casos de isolamento, como os bloqueios impostos durante a pandemia”, advertiu a Relatora Especial da ONU sobre violência contra as mulheres, Dubravka Simonovic.
“Todos os estados deveriam fazer esforços significativos para enfrentar a ameaça da COVID-19, mas não deveriam deixar para trás mulheres e crianças vítimas de violência doméstica, pois isso poderia levar a um aumento da violência doméstica, incluindo os femicídios de parceiros íntimos”, pediu.
“O risco é agravado numa altura em que não há ou há menos abrigos e serviços de ajuda disponíveis para as vítimas”, alertou.
Armas em silêncio
Mas há também o silêncio comemorado. No início da semana, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, apelou ao mundo para que todas as partes em conflito declarassem um cessar-fogo global. O objetivo era o de permitir que a ajuda aos mais necessitados chegasse para preparar as populações para o coronavírus.
Na avaliação da ONU, 100 milhões de pessoas poderiam estar em uma situação crítica se o vírus desembarcar na periferia do mundo e “milhões poderiam morrer”
O que parecia um apelo vazio foi surpreendentemente atendido por algumas partes. Em Camarões, a milícia separatista Forças de Defesa do Sul anunciou um cessar-fogo no dia 25 de março para que as pessoas possam ser testadas. Ainda que o grupo seja a única milícia armada do país a seguir tal exemplo, a esperança é de outros sigam o mesmo caminho.
Nas Filipinas, guerrilheiros comunistas também declararam um cessar-fogo. O Exército Popular recebeu ordens do Partido Comunista das Filipinas para suspender ataques até o dia 15 de abril.
Os rebeldes disseram que o cessar-fogo é uma “resposta direta ao apelo do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, para um cessar-fogo global entre as partes em guerra com o propósito comum de combater a pandemia de Covid-19”.
No Iemen, tanto o governo como Ansar Allah aderiram à ideia do cessar-fogo, no esforço de se evitar a eclosão de um surto.
Dentro da ONU, a esperança é de que essas brechas sejam usadas para restabelecer o diálogo entre as partes, ainda que muitos admitam que tal cessar-fogo é alvo de manipulação política por parte dos principais atores no conflito.