“O ensino da História tem de mudar”

Joseph C. Miller, historiador, sobre como devemos olhar para o racismo

Por  CHRISTIANA MARTINS, do Expresso 

Foto retirada do site 

Portugal foi confrontado esta semana com a necessidade de repensar a forma como a História é ensinada. O apelo feito pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, organismo do Conselho da Europa, sublinha que a disciplina “deveria englobar o papel que Portugal desempenhou no desenvolvimento e, mais tarde, na abolição da escravatura, assim como a discriminação e a violência cometidas contra os povos indígenas”. Profundo conhecedor de Angola e do período colonial português, Joseph C. Miller diz que a intervenção internacional vem subir a parada de uma discussão longe de estar concluída.

É necessário rever o ensino da História?
Claro que sim. A História não pode ser vista como um passado deixado para trás, mas como uma forma de nos entendermos no presente. Os acontecimentos do presente são, por definição, pouco claros, e as visões do passado dos historiadores resultam de perceções seletivas e politizadas do presente. A vossa discussão sobre o período das Descobertas resulta de um debate produtivo e faz parte de um movimento para se abandonarem os nacionalismos do início do século XX, baseados nas raças, substituindo-os por uma comunidade política mais rica e característica do século XXI, baseada na diversidade. A diversidade de pessoas que se descobriram no século XVI era muito superior às diferenças das populações atuais. Vocês em Portugal têm muito que aprender ao revisitar a História.

O ensino da História pode prevenir o racismo?
Sem dúvida. O racismo surge quando estranhos se rejeitam, cada um ignorando o outro. O racismo depende da preservação da ignorância e da confiança em estereótipos desatualizados, criados para depreciar estranhos, vistos com cautela porque são desconhecidos, ou melhor, conhecidos erroneamente apenas como visões imaginárias de mentes desinformadas e medrosas. A única maneira de seguir adiante é que todos aprendam o máximo possível uns sobre os outros e o ensino da História, constantemente renovado, impulsiona-nos ao longo desse caminho rochoso.

Sem a História seria mais difícil?
Sem a História, as ansiedades da ignorância só se acumulam até explodirem.

Como pode Portugal lidar com a construção de um monumento em tributo às populações escravizadas?
No fundo, o debate atual é sobre “de que passado estamos a falar?” Ambas as narrativas — as façanhas de coragem pessoal e imaginação no final do século XV e, por outro lado, a escalada de antigas práticas de escravização e da concentração da riqueza e poder na Europa — contam apenas partes da História. A violência frequentemente empregada para capturar, vender ou disciplinar os escravizados não definia as suas vulnerabilidades, nem as respostas criativas aos desafios que enfrentavam. Um memorial unificador da coragem e determinação pode celebrar os resultados dessa criatividade surgida sob severa pressão.

Tendo Portugal sido o país responsável pelo maior comércio de escravos da História, deveria criar um museu das Descobertas?
Somente se a abordagem for histórica e não retórica. A história é complexa e contraditória, e isso é bom. Como historiador, vejo as ousadas “descobertas” dos séculos XVI e XVII de Portugal tão motivadas pelo desespero como pelo desejo. A maioria das posições portuguesas em África nos primeiros séculos foram menos resultado de seu poder militar ou de investimentos comerciais do que produto de processos históricos no próprio continente africano. Foi uma combustão espontânea que resultou dos contactos iniciados pelos marinheiros portugueses. Um museu das chamadas Descobertas pode destacar as realizações dos navegadores, refletindo também a complexidade irónica e trágica das suas consequências não intencionais.

Pode reforçar problemas de relacionamento entre o país colonizador e ex-colónias?
Depende. Se é uma comemoração pública da conquista ou do sofrimento. Essa é a questão em debate. Em termos gerais, uma comemoração pública deve ser unificada em torno da realização humana. Destacar o sofrimento é partidário, divide. A implicação de uma abordagem histórica, que inclui todas as partes e, portanto, reconhece os conflitos, trazendo as diferentes realizações dos participantes em diferentes posições, permite tirar o melhor dos respetivos desafios. As discussões em torno do museu em Lisboa mobilizaram os nostálgicos do orgulho nacional, outrora explorado pelo Estado Novo, e outros prontos a assumir destaque num século XXI mais inclusivo e diverso. Só nos movemos se confrontarmos os nossos passados, pois eles tornaram-nos o que somos. Na História não há nada estático. A única certeza é que o futuro será diferente do passado e também do presente. O desequilíbrio do século XX entre “o Ocidente colonial e o resto colonizado” está a enfraquecer. Portugal, Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde e Guiné podem avançar juntos, colaborando e esse seria o tema do museu “As Descobertas e o Nascimento do Mundo Moderno Globalizado”, incluindo as dores. Na vitalidade das discussões sobre como repensar o Portugal do futuro vejo um caminho vigorosamente saudável, desde que todos os lados se continuem a escutar uns aos outros e a respeitar as suas contrapartes. O projeto do museu é uma oportunidade para colaborar, não uma ocasião para competir.

JOSEPH C. MILLER

Reconhecido africanista, Joseph C. Miller é emérito professor da Universidade de Virgínia. O seu livro “Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade”, de 1988, mantém-se como uma obra de referência. O historiador está a redigir uma história mundial da escravatura.

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