O estigma da vítima

Há um fenômeno interessante que acontece frequentemente em contextos de debate, sobretudo os que envolvem questões relativas a minorias: o argumento da “vitimização”, afirmando que alguém – geralmente uma mulher, pessoa negra ou LGBT – se coloca na posição da vítima que não é. Em outros momentos, usa-se a palavra “vítima” como algo pejorativo, algo que é extremamente indesejável ser e, portanto, nenhuma pessoa autônoma, independente e inteligente seria. Bem, esse é um problema bastante grave.

Por Jarid Arraes no Questão de Gênero 

É muito lógico assumir que ninguém deseja ser vítima. Ser vitimado é algo ruim; afinal, isso implica ser prejudicado ou agredido de alguma forma. Alguém pode ser vítima nos mais diversos contextos; um acidente no trânsito, um assalto, um estupro – as possibilidades são muitas. Parece algo muito simples, mas em determinados contextos, assumir que a “vítima” é um ser incapaz, sem autonomia, agência, ou assumir que a vítima é definida pelo que sofreu pode gerar muitos prejuízos, não apenas para essa pessoa, mas para toda a sociedade.

É possível, por exemplo, que uma moça seja vítima de violência doméstica, assédio ou estupro, para citar alguns exemplos de violência contra a mulher. Talvez seu marido tenha a espancado ou um amigo tenha tirado proveito de sua embriaguez para abusá-la sexualmente. Essa mulher, agora uma vítima, pode ser uma pessoa de autoestima frágil, já amedrontada, retraída e que não se sente empoderada o suficiente em sua vida. Desse modo, a situação de violência pode agravar o quadro e tornar ainda mais difícil a tomada de atitude para sair do abuso e denunciá-lo. De fato, isso é algo que acontece em muitos casos, já que estruturalmente em nossa sociedade as mulheres são encorajadas a comportamentos e personalidades passivas, que nunca devem reagir, levantar a voz e cultivar posturas assertivas.

Também é possível que uma mulher independente, autônoma e “bem resolvida” acabe sendo vítima de um crime misógino, como a violência psicológica praticada por um parceiro. Aquela mulher que socialmente é extrovertida, inteligente e segura de si pode se encontrar em um contexto de violência, de modo que em sua vida privada a sua autoestima se encontra destroçada, sua capacidade de se enxergar de forma positiva é bloqueada e ela começa a duvidar de suas próprias desconfianças. Ou seja, aquela mulher, talvez até mesmo feminista, pode se encontrar confusa, duvidando do que está vivendo e questionando se o que está acontecendo é, de fato, uma violência.

Tanto para a mulher que já se sentia fragilizada quanto para a mais empoderada, situações de violência causam impactos profundos e severos. Isso é algo natural de qualquer ser humano, que sofre, sente medo e acha que está perdido quando é traído e violentado por alguém que antes admirava. Isso não é algo exclusivo das mulheres, tampouco das mulheres de autoestima baixa e sem autonomia. Um dos maiores problemas desse quadro, no entanto, é o paradigma cultural que afirma a condição de vítima como algo indigno, repugnante e desprezível.

Por aprenderem que ser vítima é algo de “gente fraca”, essas mulheres muitas vezes não pedem ajuda e não denunciam seus agressores. Há um forte sentimento de vergonha envolvido. A vítima de sente humilhada e não quer que a sociedade veja como foi enganada, não quer que as pessoas saibam dos detalhes degradantes que viveu. Nossa sociedade não encoraja as vítimas a falarem, tampouco diz a elas que ser vitimada não é atestado de incapacidade e inferioridade. Pelo contrário, o tempo todo ouvimos que fulano está “se fazendo de coitado”; um adjetivo que muitas mulheres vítimas do machismo, especialmente, não querem assumir publicamente.

Precisamos refletir sobre isso, pois estamos reproduzindo ideias distorcidas e promovendo o silenciamento das vítimas. O constante reforço da ideia de que somente mulheres fracas e ingênuas se tornam vítimas faz com que muitas mulheres não levantem a voz para denunciar a violência, além de funcionar como um impedimento à plena autonomia dessas mulheres. Isso potencializa o medo, mina a coragem e impede uma tomada de atitude; afinal, quem dará crédito a uma pessoa tão pequena? Por que sua voz será importante?

Se essas vítimas soubessem que a violência pode cair sobre qualquer mulher, que ser vítima não é uma vergonha e que, mesmo sendo vítimas de abuso, elas podem falar, levantar o queixo com coragem e discursar assertivamente a respeito desse abuso sofrido, muita coisa certamente seria diferente. Porque é possível sair de uma situação de abuso, superar o medo e denunciar a violência com uma voz de fazer tremer as bases da sociedade. Um exemplo maravilhoso? A jovem Malala, que se recuperou de uma tentativa de assassinato e assumiu um importantíssimo ativismo pelo direitos das mulheres.

Assim como Malala, há milhares de mulheres que foram vítimas de alguma violência misógina. Mulheres fortes, articuladas, talentosas e que contribuem para a evolução da humanidade. É certo que no momento da violência essas mulheres sentiram medo, dor e passaram por um sofrimento psíquico intenso, algo plenamente natural – mas também é verdade que o fato de serem vítimas não as definiu como incapazes e manipuláveis. Assim, quando alguém diz que uma mulher está “se vitimizando” ao falar em seu sofrimento após ser violentada, esse alguém está reiterando uma estrutura de poder que tenta impedir a autonomia da mulher; está reforçando que ela é fraca somente porque ser vítima é ser fraca, uma falácia que custa vidas.

Por isso, falo diretamente com as minhas leitoras: se você é uma mulher que foi vítima do machismo, saiba que isso não é uma vergonha e nem te define enquanto sujeito. Você tem todo o direito de sofrer, mas saiba que é capaz de se erguer do seu sofrimento. Não acredite em mentalidades machistas que inferiorizam a mulher vitimada. Qualquer uma de nós pode ser vítima do machismo em um ou mais momentos de nossas vidas, mas isso não quer dizer que somos burras, infantis e sem autonomia. Saiba que assim como você, muitas outras mulheres também passaram por situações de abuso. Estamos juntas, lutando para derrubar as estruturas misóginas da sociedade.

Denuncie, fale a respeito e peça ajuda – você tem força. Juntas, nós somos mais fortes.

Foto de capa: Divulgação

+ sobre o tema

A confissão de Messi que rompe um antigo tabu masculino

"Você também faz sentado? Como eu”, disse o jogador...

18 textos essenciais para estudos e pesquisas sobre gênero e sexualidade

Angie C. Bautista Silva, Caio Castro, Cássio Oliveira, Cícera Amorim, Katarina Vieira, Maria Eduarda...

Guia colaborativo reúne denúncias de machismo em bares e baladas

Você já foi vítima de machismo em algum bar...

Vítimas de agressão física e sexual receberão tratamento diferenciado

Rio de Janeiro – Vítimas de agressão física e...

para lembrar

Mãe Stella recebe mais alta condecoração da Assembleia Legislativa

Primeira liderança religiosa de matriz africana a receber a...

Maria Carolina de Jesus

Filha de negros, Carolina de Jesus nasceu em Sacramento,...

A fabulosa geração de gays que nasceu para ser tudo que ninguém quer

Apropriam-se de termos, criam linguagem própria e um andar...

Grupo varre a internet à caça de racismo e preconceito contra domésticas

Criada para denunciar manifestações preconceituosas na rede, a comunidade...
spot_imgspot_img

Pesquisa revela como racismo e transfobia afetam população trans negra

Uma pesquisa inovadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), intitulada "Travestilidades Negras", lança, nesta sexta-feira, 7/2, luz sobre as...

Aos 90 anos, Lélia Gonzalez se mantém viva enquanto militante e intelectual

Ainda me lembro do dia em que vi Lélia Gonzalez pela primeira vez. Foi em 1988, na sede do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), órgão...

Legado de Lélia Gonzalez é tema de debates e mostra no CCBB-RJ

A atriz Zezé Motta nunca mais se esqueceu da primeira frase da filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez, na aula inaugural de um curso sobre...
-+=