O processo de alfabetização de uma criança é tão fascinante quanto intrigante. As letras passam de símbolos indecifráveis a sílabas, palavras, frases, até a condição de expressão do eu. Um mundo completamente novo e imenso que nasce a partir do ritmo, som, formato e efeito vindos da interação e significação das letras e delas com o entorno, com a realidade. Chega a parecer um portal mágico, mas a verdade é que o processo é longo e lento, fruto de uma estrada bastante particular de estímulos, muito esforço, troca, e necessidade (de comunicação).
no Think Olga
– B com A?
– BA, responde a criança, certeira.
– B com E?
– DO? arrisca, insegura.
A resposta soa absurda a uma pessoa alfabetizada, íntima da lógica do letramento e das conexões necessárias para estar nele. Como pode? Mas o fato é que o domínio de uma linguagem ou conhecimento novo é sempre um processo difícil e desafiador. A primeira palavra lida por uma criança é tão-somente a soma das letras, e mesmo assim, um sacrifício similar ao de subir 50 lances de escada. O esforço é visível na força do abdome, na concentração absoluta, na quase falta de ar. Aos poucos, com muito treino/estímulo, o processo se consolida. As letras passam a fazer sentido – um sentido funcional, social e estético – e a descoberta da possibilidade de ler a vida e dialogar com o mundo trazem autonomia e auto-estima irreversíveis. A chave gira e nada é como antes.
O feminismo também é assim, parece uma ficha que cai, um portal mágico que se abre, uma cirurgia de catarata bem sucedida. A avassaladora transformação que ele efetiva, no entanto, é gradual e anti-horária. Sempre contra o curso do rio. É um desconstruir de referências, uma revisão de conceitos num processo tão dolorido e particular (antes de se perceber também coletivo) que beira a desalfabetização para uma outra alfabetização do mundo – que não é novo, mas que pela nova e lenta tomada de consciência, se descortina. E aparece como realmente é – masculinizado, opressor, desigual e extremamente violento com as mulheres e com os grupos igualmente desrespeitados e anulados por sua condição de raça, classe, sexualidade, idade.
A bolha estoura e o choque de realidade escancara o histórico e continuado processo de desqualificação e desfiguração da persona da mulher e de sua presença na sociedade, uma presença ora útil – quando mantida na caixa pré-formatada que lhe foi determinada, ora perigosa e incômoda, ao primeiro sinal de ‘subversão’. A explosão da bolha, tal qual a consciência da leitura, novamente é irreversível. Não há caminho de volta.
O feminismo é quase como a troca de pele da cobra, se ela não fosse involuntária. Perceber o ‘novo’ mundo dentro do mesmo mundo demanda maturidade, esforço e coragem para assistir um filme de terror retratando a própria realidade. Ter a consciência dói e exige atitudes. Sair do lugar e buscar incessantemente a transformação do modelo de tudo o que é modelo. Lutar todos os dias, em cada momento individual e coletivo por uma democracia feminista, que se propõe a quebrar o paradigma da dominação masculina e seu apetite insaciável pelo poder, para incluir, dialogar e construir coletivamente (construir com) uma estrutura social mais justa, democrática e constitucional. Sim, está tudo lá, nossa Constituição é linda. Mas a consciência nos exige mais do que a ação. Ela demanda perdão ao nosso próprio retrovisor e sororidade efetiva a cada mulher – cada pessoa – em seu estágio de desalfabetização. É preciso estar perto para contribuir com o processo, abrir diálogo, sempre com respeito ao tamanho de cada perna e de cada passo.
O que resta da nossa paciência histórica deve ser direcionado a esta solidariedade, empoderamento mútuo e valorização da pessoa, criando as condições para a individual e intransferível busca pelo conhecimento – inicialmente de dentro para fora e depois em ambos os fluxos. E a cada descoberta cresce a luta pelos direitos sociais negados, inexistentes ou corrompidos. O feminismo torna-se uma necessidade – e todas as mulheres serão feministas, é apenas uma questão de tempo.
Algumas entenderam ainda crianças – quanto mais dura a vida, mais cedo a tapa na cara abre os olhos. Outras estão juntando as letras, ou já lêem com fluência, cada uma a seu tempo. E, como processo, o feminismo não se encerra no letramento, ele se amplia, se discute, se fortalece. Não existe mais/menos feminista, nem há exatamente uma ‘linha de chegada’, muito menos um caminho único na estrada. Há um borbulhar de forças genuínas, e por isso mesmo até difusas, em busca de uma sociedade verdadeiramente democrática. E vamos a ela por mar, por terra, e pelo ar. O feminismo é a revolução.
Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora de Jornalismo na Uninassau (PE) e repórter da revista de educação Pátio. Pesquisa a perspectiva de gênero presente no discurso jornalístico.
Arte: Gaby D’Alessandro