O Folião de raça de Cris Pereira – Por Cidinha da Silva

Quem pensa que Brasília é apenas o chão musical de Ellen Oléria, Dhi Ribeiro e Hamilton de Holanda, precisa conhecer Cris Pereira.

 

Nascida em berço de samba, Cris Pereira diz que a própria voz é rouca e imperfeita, mas quem ouve Folião de raça se pergunta: O que comove mais, a beleza ou a perfeição? O que move, o que subverte e surpreende, a limpidez, a técnica dura ou a emoção?

Folião de raça movimenta a areia da música ruim que impregna os ouvidos da gente. É colírio para os tímpanos que passam a enxergar depois de ouvi-lo. É disco de cantora jovem que lembra os discos das cantoras antigas, como Nora Ney, grande libertadora das mulheres de vozes imperfeitas, fortes, belas e sem tantos agudos. Porém, vestido de contemporaneidade, multiculturalidade, marcas tão registradas da criação artística brasiliense.

Os arranjos de Lucas de Campos são serenos, requintados, não têm afetação, deixam a cantora livre e às vezes precisam segui-la, porque ela sai pelas matas acompanhando um  beija-flor que a seduziu. Ela brinca ao cantar, celebra a liberdade de cantar no próprio tempo, enquanto o coro segue como se fosse ele o cantor principal.

Em Clareira, Cris Pereira ensaia essa liberdade, mas solta-se mesmo na belíssima Facho de esperança, que ela reinventa em interpretação autoral daquelas que a gente não esquece mais. A composição de Cacá Pereira, aliás, abre o disco com poesia de primeira: “Mandou tirar nosso estandarte da calçada / A batucada lá não pode mais ficar / Bloco na rua, samba de quadra sem quadra / Sem teto o samba volta ao lume do luar.”

Folião de raça, de Pedro Cariello e Henrique Nepomuceno, é um poema em dois movimentos conduzido pelo violão delicioso de Vinícius Magalhães. A primeira parte é um lamento-reflexivo da mulher que repensa a relação amorosa e quer que o homem a acompanhe. No segundo movimento, mais definido pela mudança na música do que propriamente da letra, o Folião de raça toma conta da cena, a mulher “se cala na desgraça” e não sabemos mais o que ela sente. É letra de homens que falam de sentimentos das mulheres, posicionam-se inventando um lugar para elas e dá certo (coisa rara de acontecer), como nas composições de Chico Buarque.

Lágrima da desilusão tem a gaita gaiata de Pablo Fagundes a pontilhar toda a canção, acompanhada pelo baixo bem marcado de Paulo Dantas, o piano discreto de José Cabrera e a bateria de Leander Motta em diálogo brincante com o violão de Lucas de Campos e a sempre saborosa cuíca de Guto Martins. Talvez seja a canção em que cada instrumento aparece individualmente, ao mesmo tempo em que forma a moldura de água para que a letra corra macia e recupere o eu lírico de mais uma dor de amor composta por Sérgio Magalhães.

Briga de Reis, de Chico Dias e Codó, é simples e boa como uma canção cantada em roda de capoeira. O acordeom de Juninho Ferreira dá um tempero especial ao arranjo e prosseguirá temperando ao longo do disco.

Poema, de Vinicius de Oliveira e Breno Alves, é dedicada à filha da cantora, Poema, e, como de hábito neste tipo de canção, é uma declaração de amor à  pequena que participa divertida do final.

Mas ela não é filha de Oxum? Alguém se pergunta ao ouvir Cris Pereira cantar com tanta alma para Iemanjá? Sim, ela é, mas tem também a liberdade de Oxóssi para ser quem quiser quando canta e diz poemas, como em Encantos na areia, de Vinícius de Oliveira e Arthur Senna.

Incompleta e Deixa estar são composições da cantora. A primeira em parceria com Henrique Nepomuceno é uma canção triste, um belo poema, cujo verso mais lindo é: “Vem silenciar / meu pranto que arde / e que reparte a luz no meu olhar”.  É um texto de imagens que ao final convida alguém para tomar o eu lírico e amá-lo, ou seja, controlando tudo a voz da canção se entrega. Coisa de mulher no comando.

A segunda canção autoral, Deixa estar, é dividida com Ana Reis. Música e letra são otimistas, brejeiras, dirigidas a um menino, a quem a letra dá dicas para amadurecer, transformar-se em homem. A poesia pode decantar mais, mas está no bom caminho.

Samba é fineza de Vinícius de Oliveira tem clima de gafieira no arranjo, letra pouco criativa, rimas pobres, como: “Luz mais pura que alimenta as nascentes da paz / Rega o pranto de quem a ti satisfaz”, mas convida a dançar.

Mais um samba de saudade, de Leandro Fragonesi, é um samba gostoso para ouvir e para sambar, mas quando canto junto com a cantora aquele “vento frio que bateu e foi perverso” rimando com o “universo aberto quando o verso nasceu”, não me agrada, nem convence.

Em Imagem, canção instrumental de Alencar 7 Cordas, Cris Pereira brinca com os instrumentos, com a voz, com a música, num clima de cabaré de jazz dos anos 20, 30, e ela, é a cantora, a diva,a dona da voz e do palco.

O ponto  alto do disco é a dolente Espelho da vida que parece transformar-se em outra canção introduzida por acordeom e violoncelo até que um tamborim solitário e uma cuíca preciosa chamam a voz de Cris Pereira e então nos lembramos que se trata daquele velho samba de Ivone Lara e Délcio Carvalho, companheiro de tanto choro e bebida depois de mais um amor perdido.

E não bastassem as surpresas do arranjo, vem a própria Ivone Lara com a voz de primeira dama do samba, agora frágil, menina nonagenária afinada e doce.

O encanto que traz o desejo de amar são lições que aprendemos vendo o mar e ouvindo o acordeom de Juninho Ferreira e a cuíca de Guto Martins. E Cris Pereira canta solta, segura, melódica, suave. Sem contenções faz também seu laraiá e avisa aos navegantes que está pronta para carregar o bastão.

 

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