Pioneira da dança afro-brasileira, Marlene faleceu nesta segunda (13), aos 83 anos
Por Makota Celinha Gonçalves, do Brasil de Fato
Belo Horizonte, perde uma de suas mais importantes filhas do cenário cultural da cidade, Marlene Silva, a diva da dança afro. Uma mulher à frente de seu tempo, que não se deixou intimidar pelo racismo, pelo machismo que impregnava o cenário cultural de nossa cidade na década de 80.
Marlene Silva, ao nos deixar esta semana nos deixa um legado de beleza, de leveza e de resistência produzida pelos corpos negros que ela nos ensinou a admirar nas coreografias de danças diversas, que se propõe a contar a história de toda uma gente, a gente negra desta diáspora africana.
A história da dança afro em BH, traz em si a marca desta mulher que dedicou sua vida a pesquisa, a criação e a contação de uma história de resistência. Marlene ressignificou os movimentos corporais dos corpos pretos como nenhuma outra pessoa.
Quando assistíamos seus espetáculos, não só admirávamos a beleza dos passos, a leveza dos saltos, mas também aprendíamos como nossos corpos podem transmitir sentimentos, dores, alegrias, força, cadência e resistência.
Tive o prazer e a benção de conhece-la, ainda quando não entendia muito o significado de ser uma mulher negra. Estava aprendendo a me conhecer e a me posicionar enquanto uma cidadã de direitos, era ainda uma jovem medrosa de tudo, já marcada pelo racismo e suas práticas cotidianas.
Ficava boquiaberta ao assistir os espetáculos de dança afro apresentados, de ver como aqueles corpos se comunicavam comigo, me faziam sentir mais forte, mais gente e mais completa. Aprendemos com esta mulher que nossos corpos da cor de azeviche são capazes de traduzir movimentos que falam por si só de nossas trajetórias, de nossas histórias, de nossas bravuras para resistir.
Marlene Silva, se transformava em uma gigante quando o assunto era a arte, a dança afro, a luta contra o racismo protagonizada por movimentos febris, sincronizados por um corpo em busca da liberdade. Ela nos trazia por meio da dança a compreensão de que liberdade é muito mais que a ausência de correntes a nos apertar o corpo.
Com Marlene Silva nos foi dada a possibilidade de aprender, com a mestre, que nosso corpo é nosso templo, que por meio dele podemos redesenhar na linha do tempo os movimentos que nos remontam a nossa origem: a África.
Para nós que compreendemos a vida e a morte como partes intrínsecas de ser, a partida de Marlene Silva para uma outra dimensão em plena crise de coronavírus, onde a solidão entre muitos se apresenta de forma muito pungente, tem um significado mais complexo.
Vivemos momentos de medo, de aflições, de preocupações com os nossos e sentir esta dor desse luto desta forma, pode nos embaralhar os sentimentos.
Mas, por mais difícil e dolorido que seja viver esse momento, devemos ter em mente que a morte também nos possibilita momentos de agradecimento. Devemos agradecer a vida pela oportunidade que nos foi dada de dividir com alguém tão especial como Marlene, parte de sua estrada e trajetória.
Agradecer o fato de que nos foi possível aprender a sermos melhores a partir de seus ensinamentos, de que aprendemos conhecer e a reconhecer os sinais de ancestralidade e heranças africanas adormecidos em nossos corpos negros.
Aprender a viver com esta coisa maravilhosa chamada saudade, que para mim é a memória de nossa subjetividade afetiva, uma coisa que se apresenta no início como uma dorzinha, pequena, fina, de algo ou alguém que nos marcou muito. Depois cresce um pouco e aí se estabiliza.
Nesse momento a saudade começa a fazer parte de nossa vida, e sempre a teremos daqueles e daquelas que nos marcaram positivamente, para toda a vida, e que tal qual um arco íris, um dia fugiu pela janela de nossa existência física e foi morar no indelével mundo da saudade.
Hoje deixo para Marlene Silva meu agradecimento por ter existido e ter tido tanta força para nos arrancar do lugar comum. Vá em paz Marlene, vá dançar, bailar e coreografar em outras paragens. Com certeza seu brilho e força serão pontos de luz para muitos de nós negras e negros que ainda permanecemos por aqui.
Makota Celinha é jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka e coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB).
Edição: Elis Almeida