O legado de Milton Santos: um novo mundo possível surgirá das periferias

O geógrafo completaria 93 anos neste 3 de maio e é reconhecido internacionalmente por suas ideias

Por Mayara Paixão, Do Brasil de Fato

Foto em preto e branco de Milton Santos, homem negro usando óculos, sentado sorrindo com um livro na mão
Milton Santos em entrevista para o Jornal do Brasil, em 1977 / Foto: Reprodução/Site Milton Santos

Milton Santos (1926 – 2001) é reconhecido mundialmente como um dos maiores geógrafos brasileiros. Dedicou a vida a analisar sua época. Crítico feroz do modelo de relações internacionais que se fortalecia nas décadas de 1980 e 1990, acreditava ser possível e necessário pensar em outra forma de globalização.

O professor, de origem baiana, é responsável por desenvolver novas compreensões de conceitos como espaço geográfico, lugar, paisagem e região. Defendeu que o uso de um território é político e deve ser estudado para entender as sociedades. Deu atenção especial para a economia urbana dos países tidos como “subdesenvolvidos” e acredita que, uma vez unidos, os povos darão novo sentido à humanidade.

Para Milton, era preciso questionar os consensos já estabelecidos. Questionar, aliás, era a sua principal característica segundo conta Nina Santos, sua neta.

“Seu legado não é restrito a um conceito ou a uma questão social, ele é extremamente amplo. Acho que a principal herança de Milton Santos é justamente ressaltar a importância do questionar, do pensar diferente, de defender o seu ponto de vista mesmo que contra uma maioria que questiona a sua posição.”

Neste 3 de maio de 2019, ele completaria 93 anos. Milton Santos possui uma obra com mais de 40 livros publicados e, ao longo de sua carreira, recebeu o título de Doutor Honoris Causa em 20 universidades nacionais e internacionais.

Milton Santos recebendo o título Honoris Causa na Universidad de Barcelona, em 1996 (Foto: Reprodução/Site Flickr)

Da Chapada Diamantina para o mundo

Milton Santos nasceu em Brotas do Macaúbas (BA), na Chapada Diamantina, filho de uma família de professores primários. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fez doutorado em geografia na universidade francesa de Strasbourg.

Além de professor universitário, o geógrafo também trabalhou como jornalista em periódicos como o diário “A Tarde”, o mais antigo da Bahia e um dos mais antigos do país. Milton teve dois filhos e quatro netos, tendo conhecido apenas dois em vida.

O geógrafo rompeu barreiras não apenas pelos pensamentos fora da curva, mas por ser um homem negro inserido em uma intelectualidade predominantemente branca. “Lembro de um episódio que contava em que foi barrado na portaria da USP, em um final de semana, e impedido de entrar porque o porteiro, também negro, duvidava que ele fosse efetivamente professor daquela instituição”, recorda-se a neta, Nina Santos.

O preconceito racial presente em seu cotidiano foi um tema que, apesar de não ter sido central, também permeou a obra de Milton Santos. Em uma de suas poucas palestras disponíveis em vídeo, ele afirmou que “a luta dos negros só pode ter eficácia se forem envolvidos todos os brasileiros: Não cabe só aos negros fazer essa luta. Ela tem que ser feita sobretudo por todos.”

O exílio na França

A partir do golpe de 1964, o contexto da ditadura civil-militar forçou ao exílio muitos dos intelectuais brasileiros. Milton Santos chegou a ser preso por sua atuação política e militância. Logo depois, partiu para o exílio na França. O baiano trabalhou como professor convidado em importantes universidades francesas, como as de Toulouse, Bordeaux e Sorbonne.

É neste cenário que a então jovem estudante de geografia Maria Adélia Souza conhece o professor em 1965. Na época, ela cursava o mestrado em Paris com o também renomado intelectual brasileiro Celso Furtado, amigo de Milton Santos. Em uma das reuniões de sua orientação acadêmica, conheceu o geógrafo.

“Foram duas horas da maior aula de economia e geografia que tive em minha vida, e já estou com 80 anos. Foi assim que eu conheci Milton”, conta.

O que Maria Adélia não imaginava era que naquele encontro começaria uma amizade e parceria acadêmica que durariam até os últimos dias da vida de Milton Santos. A geógrafa, hoje professora titular de Geografia Humana da USP, assistiu de perto a mudança que o baiano proporcionou nos estudos da geografia.

Milton Santos, homem negro d terno cinza, pousando para foto com Maria Adélia Souza, mulher branca de vestido branco
“Milton, sem dúvida, foi o refundador da geografia contemporânea”, defende a amiga e professora Maria Adélia Souza (Foto: Arquivo Pessoal)

Milton Santos também fez um grande esforço para romper a bolha da academia e levar suas ideias até quem ele tentava retratar: o povo brasileiro.

Por uma outra globalização (2000) é o primeiro livro que ele fala ‘Adélia, eu vou escrever um livro fácil para quem não for geógrafo entender, qualquer cara do povo entender’. Eu disse ‘Milton, você acha que alguém vai entender a mais-valia mundial, a convergência dos momentos, a unicidade técnica do planeta?’ Eu disse ‘ninguém entende isso, Milton’.”

Ao que parece, as pessoas entenderam. Sua obra e seu legado se tornam conhecidos em todo o mundo. Em 1994, Milton ganhou o maior prêmio da geografia mundial, o prêmio Vautrin Lud, consagrando-se como o único geógrafo brasileiro e latino-americano a consegui-lo até hoje.

Para Maria Adélia, o amigo foi mais do que um grande geógrafo: “Milton se tornou mais do que um geógrafo, ele se tornou um pensador do Brasil. A obra dele fundamenta uma perspectiva libertária para a humanidade. Por isso que Milton Santos foi genial.”

Um novo mundo possível

Em 1977, Milton Santos retorna do exílio e se torna reconhecido como um pesquisador engajado, enquanto leciona na Universidade de São Paulo (USP).

Quase duas décadas passadas da sua volta ao Brasil, no ano de 1995, o país assiste à posse do governo de Fernando Henrique Cardoso. Tem início a implementação de um pacote de medidas neoliberais. Empresas estatais foram privatizadas e o capital estrangeiro entrava com liberdade no país.

Foi nesse período que o cineasta Silvio Tendler, atualmente com 69 anos, conheceu o professor Milton Santos. “A minha surpresa foi conhecer um dos homens mais brilhantes da minha vida. Tudo o que ele fazia era com um sorriso muito irônico, sarcástico. Era uma pessoa ao mesmo tempo muito dura e muito doce, capaz de falar as coisas mais duras do mundo com um sorriso nos lábios”, recorda-se.

Talvez a análise mais crítica e reconhecida mundialmente feita pelo geógrafo tenha sido sobre a globalização. Aquela era também a época em que o conceito passou a aparecer com maior frequência no debate público e entre os movimentos populares.

Silvio Tendler, por exemplo, ficou encantado com a possibilidade das barreiras da distância supostamente rompidas: a possibilidade de viajar, a baixa no preço dos produtos vindos de fora. Uma breve conversa com Milton Santos mudou a visão do jovem cineasta:

“Eu estava um pouco seduzido por esses processos. Conversei sobre isso com Milton Santos e ele era extremamente crítico. Eu falei ‘mas professor, por que o senhor está fazendo essa crítica se as pessoas estão extremamente seduzidas por essa possibilidade?’, aí ele falou: ‘É muito simples. Porque não vai ter para todo mundo.’”

As palavras marcaram a memória de Tendler. No ano 2000, ele voltou a procurar o amigo Milton Santos. Uma pequena entrevista que deveria durar dez minutos rendeu um material de duas horas, que daria origem ao documentário Encontro com Milton Santos: O Mundo Global Visto do Lado de Cá, lançado no ano de 2006 e premiado em diversos festivais de cinema.

O filme retrata a análise de Milton Santos sobre o processo de globalização. Para o geógrafo, das periferias globais sairia a possibilidade de uma nova relação entre os países do globo, com mais igualdade e menos injustiça entre os povos. A cultura popular e a crescente capacidade de se comunicar impulsionada pelas novas tecnologias da informação dariam resultados.

Segundo Tendler, o documentário, mesmo mais de uma década depois de lançado, permanece atual. “É um filme que não envelhece pela atualidade das coisas que Milton Santos fala e pelas bobagens que se fazem no mundo”, opina.

Milton, vestindo uma camiseta estampada amarela, em pé com Silvio Tendler, homem branco vestindo camiseta estampada azul com amarelo e um colete por cima, em pé conversando
Milton com Silvio Tendler, durante a gravação do documentário. (Foto: Arquivo Pessoal)

Milton Santos antevê o quadro de hoje. Os barcos virando no Mediterrâneo com gente vindo da África, dos países árabes, de todas as culturas e as pessoas sofrendo nessas guerras provocadas pelo capital. O capital só promove fome e miséria. Ele não divide riquezas, só as concentra.

Das poucas vaidades que afirma carregar, Silvio Tendler diz não ter dúvidas: ter sido o cineasta que documentou Milton Santos é a maior delas. “Meu cinema é um antes do Milton Santos e outro depois do Milton Santos”, considera.

Segundo o cineasta, espalhar o pensamento do geógrafo é oferecer alternativas de resistência para as pessoas: “Acho que a gente comemorar o aniversário do Milton Santos divulgando a obra dele é um grito de liberdade, uma luta pela nossa independência“.

A entrevista captada por Silvio Tendler talvez tenha sido a última de Milton Santos. Quatro meses depois das gravações, em 24 de junho de 2001, ele faleceu, aos 75 anos, deixando um legado tão rico que o mundo ainda não foi capaz de absorver por inteiro.

Edição: Rodrigo Chagas (texto) | Mauro Ramos (rádio)

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