O livro é um assombro

‘A cor púrpura’, o musical’ põe o país diante do espelho

Por Flávia Oliveira, no O Globo

Flávia Oliveira. (Foto: Marta Azevedo)

Largos são os caminhos abertos por meio de livros. Na mesma sexta-feira — véspera do aniversário da Independência do Brasil — em que Marcelo Crivella enviou fiscais à Bienal do Rio para caçar obras (para ele) impróprias, estreou na Cidade das Artes o musical “A cor púrpura”, inspirado no romance homônimo de Alice Walker. O prefeito ressuscitou a censura; a sociedade reagiu em marcha para a festa literária (no Sete de Setembro, cem mil pessoas estiveram no Riocentro, recorde absoluto de público); o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, restabeleceu o livre trânsito de ideias. Direito ratificado, vale a pena refletir sobre até onde a literatura nos leva. E por que homens públicos a temem.

Eu tinha 13 anos e cursava o antigo ginásio quando Alice Walker, uma mulher negra hoje com 75, filha de agricultores do estado americano da Geórgia, publicou seu romance epistolar. O livro tecido em cartas inovou por adentrar a vida privada dos negros no Sul dos EUA na virada do século XX, sublinha Fernanda Felisberto, doutora em Letras e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro: “Ela foi a autora negra de maior relevância a chegar no Brasil dos anos 1980, no fim da ditadura militar. Isso teve um significado imenso”. Violência doméstica, abuso sexual, racismo, patriarcado, autonomia feminina, sororidade e supremacia cristã são temas da obra, que atravessa quatro décadas de vida das irmãs Celie e Nettie.

O livro ganhou o Pulitzer, principal prêmio da literatura e do jornalismo americanos, e em 1985 chegou às telas de cinema pelas mãos de Steven Spielberg, diretor, e Quincy Jones, produtor. Eu assisti ao filme no velho Comodoro, na Tijuca, uma das salas de rua transformadas em templos da Igreja Universal do Reino de Deus, da qual o prefeito do Rio é bispo. Era adolescente e fui com um homem oito anos mais velho que tinha como namorado.

“A cor púrpura” é um filme lindo, que entrou para a história como um dos mais injustiçados da história do Oscar. Recebeu 11 indicações, não levou nenhuma estatueta, mas fez Whoopi Goldberg (Celie) candidata a melhor atriz e Oprah Winfrey (Sofia) a coadjuvante. O longa projetou as duas. A apresentadora hoje consagrada, na época, tinha um programa de entrevistas em Chicago. Só em 1986 estreou em rede nacional o talk show que a tornou a mulher mais rica do ramo de entretenimento no planeta no século XX, segundo a revista “Forbes”, e a primeira negra a figurar na lista de bilionários globais.

Quando “A cor púrpura” migrou do papel para o cinema, Spielberg já era o Spielberg. Whoopi não era a Whoopi, Oprah não era a Oprah. Eu era estudante do ensino médio e ainda guardo a surpresa e a emoção de ver mulheres negras no centro de um drama cinematográfico, submetidas e superando o patriarcado. Inesquecível.

Eu não tinha ideia de que o livro de Alice Walker se tornara musical da Broadway até Artur Xexéo me contar que assinaria a versão brasileira, com Tadeu Aguiar na direção e Eduardo Bakr na produção. O espetáculo estreou em 2005 em Nova York e, no ano seguinte, ganhou um Tony, o principal prêmio do teatro americano. Em 2018, o trio Spielberg, Oprah e Quincy anunciaram a versão do musical para o cinema. A conferir.

“A cor púrpura” desembarca no Brasil em versão teatro musical 33 anos depois da primeira edição em português do romance e da estreia no cinema. Tive o privilégio de assistir a um ensaio e também à sessão para convidados na Cidade das Artes, o equipamento público que levou uma década para ficar pronto, sorveu mais de R$ 500 milhões e comporta o significado dessa produção neste momento. A grande sala tem 1.200 lugares e, certamente, não foi planejada para abrigar um espetáculo protagonizado por 17 artistas negros — à frente Letícia Soares (Celie), Lilian Valeska (Sofia), Flávia Santana (Shug Avery), Sérgio Menezes (Albert) e Alan Rocha (Harpo).

A produção sobre violência de gênero, abuso e racismo numa pequena cidade americana no século passado dialoga com o Brasil de 2019. O recém-lançado Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabilizou 263.067 agressões domésticas, 53.726 estupros de mulheres, 1.206 feminicídios e 7.606 registros de injúria racial em 2018. “A cor púrpura, o musical” põe o país diante do espelho. É catártico. Contém a indignação dos que estão dispostos a vencer a brutalidade, a leveza de quem sabe entreter e a doçura das vozes que sabem cantar. Tudo nascido de um livro de quase 40 anos. A literatura é mesmo um assombro.

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