O maior legado do Ilê é a valorização do negro

Artigo produzido por Redação de Geledés

A exposição Ocupação Ilê Aiyê a ser inaugurada no Itaú Cultural, em São Paulo, no dia 3 de outubro, traz a trajetória do primeiro bloco afro do Brasil, não apenas consagrado no Carnaval de Salvador, mas no mundo. Após 44 anos de sua fundação, o Ilê segue com sua luta de combate ao racismo e empoderamento do povo negro.

Para falar sobre a exposição, a coluna Geledés no debate, entrevistou Val Benvindo, de 28 anos, sobrinha de Antonio Carlos dos Santos, o Vovô, presidente do bloco, e neta de Mãe Hilda Jitolu, ialorixá (sacerdotisa líder em iorubá e que faleceu em 2009) e jornalista.  Val, que no Candomblé é vòdúnsi de Sógbó, foi criada em meio aos bastidores do Ilê e tornou-se sua produtora. Ela faz parte do time de curadoria da exposição, montada em parceria com o Núcleo de Comunicação e de Música, do Instituto Itaú Cultural.

Nesta entrevista, Val fala sobre a relevância do bloco que se tornou uma lenda do Carnaval da Bahia e uma importante referência educacional para as crianças e jovens negros brasileiros.

Foto: André Frutuôso

Geledés – A exposição Ocupação Ilê Aiyêre vive a trajetória do primeiro bloco afro brasileiro que surgiu como um grupo de resistência, pela luta de combate ao racismo e pela inclusão de afrodescendentes. Passados 44 anos de sua existência, qual o legado do bloco?

O maior legado que o Ilê deixou é o autorreconhecimento, a valorização do negro. Desde que o Ilê surgiu, a ideia foi que sempre houvesse uma valorização do povo preto, das mulheres negras, da beleza da mulher negra e seu empoderamento – essa palavra que está tão em voga. Isso o Ilê já vem fazendo há 44 anos.

Geledés – Já de início o bloco sofreu muito preconceito pelo fato de não aceitar brancos. Hoje, como se coloca em relação a essa questão?

É necessário se compreender a importância de não se aceitar brancos na saída para o Carnaval. Todas as vezes que alguém questiona esse fato, a gente conversa sobre isso. O racismo no Brasil é velado. Então as pessoas não falam sobre ele. Quando a gente pergunta quem é racista, ninguém levanta a mão, mas a gente sofre racismo. Então a conta não fecha. Quando as pessoas nos perguntam se elas podem sair no ilê, se ela são negras, respondemos que essa resposta não é nossa e sim da proposta pessoa. Se ela se reconhece como uma pessoa negra, então pode sair no Ilê. Mas se esse reconhecimento é só durante o período de Carnaval, não é interessante que ela saia. Mas, obviamente, é importante salientar que existem pessoas que são notadamente brancas, é mesmo que elas sejam aliadas da causa, simpatizantes ou tenham um avô negro, elas podem ser lidas socialmente como brancas e não é saindo no ilê que ela vai lutar contra racismo. Elas podem buscar isso de outras formas.

Geledés – A exposição foi concebida nas quatro cores do Ilê Aiê. Qual a significância delas?

As cores do Ilê são vermelho, branco, amarelo e preto. Preto significa nossa cor negra; o vermelho é o sangue derramado pelos escravos; o amarelo é o poder do povo preto e o branco é a paz.

Geledés – Em um dos espaços da exposição aparecem telas que reproduzem os rostos dos moradores do Curuzu, berço do Ilê Aiyê. Como surgiu o bloco e o que representam essas figuras?

O bloco surgiu em 1974. Foi uma ideia de Vovô e Apolônio (de Jesus) de criar um bloco de negros para que as pessoas pudessem se divertir. Naquela época, a forma de se inscrever nos blocos (de Carnaval) era muito racista. Você tinha que dizer o bairro onde morava, mandar uma foto e isso era como se fosse uma seleção. Vovô sempre conta que ele queria ser carnavalesco; fazia festas em casa, organizava passeios, então surgiu essa ideia de fazer um bloco de Carnaval. Mas a coisa foi crescendo e surgiu a escola de Mãe Hilda.

Foto: Richner Allan

Geledés – Como foi a criação da escola de Mãe Hilda, também fundadora do Ilê?

É importante dizer que no momento em que Vovô disse que sairia na frente do bloco, Mãe Hilda foi logo dizendo que sairia na frente do bloco, porque se tivessem que prendê-lo, teriam que prendê-la primeiro. Ela sempre foi essa figura mãe, conselheira, que recebia a todos com palavras de conforto. Foi ela também que falou sobre fazer reforço escolar para a comunidade do Curuzu, porque ela percebia que as pessoas do entorno tinham essa necessidade. Duas filhas de Mãe Hilda eram do magistério e ela foi conversar com Vovô. Conseguiram cadeiras, lousas, giz e a escola de Mãe Hilda começou com um barracão com duas salas, separadas por cortinas. E logo a escola passou a ser uma escola formal. Depois Mãe Hilda percebeu que no período em que as crianças não estavam na escola, ficavam sem ter o que fazer. E ela novamente foi lá conversar com o Vovô para fazer um projeto social. Foi assim surgiu a Band´erê, escola de canto, banda e percussão. Crianças de todas as comunidades de Salvador podem ir lá para aprender a cantar, dançar afro. Tem ainda aula de cidadania, de estético afro, toque sagrado. O terreiro de Ilê Axé Jitolu é o pilar de tudo. E a comunidade do Curuzu é muito do que é hoje, também, por conta do Ilê é muito também por ter abraço o Ilê.

Foto: Richner Allan

Geledés – Você é sobrinha do Vovô, presidente do Ilê, e neta de Mãe Hilda Jitolu, ambos fundadores do bloco. Como sua vida pessoal se intersecciona com o Ilê?

A minha vida pessoal se interseciona com o Ilê o tempo inteiro, nos bastidores dos eventos, nos bastidores do concurso Noite da Beleza Negra. Profissionalmente, comecei a trabalhar no Ilê no final de 2008, com18 anos, mas muito antes disso eu já estava ali. Fui me encantando com esse processo de produção, muito antes de entender que eu já era produtora. Eu acompanhava o processo de seleção do Beleza Negra, estava nos ensaios, dava um pitaco ou outro para o meu pai sobre quem poderia ser o convidado daquela noite, enfim, sabia quem estava nas paradas de sucesso. Às vezes dava certo e outras não. Profissionalmente, o Ilê me formou como pessoa. Nunca me envergonhei de ser menina preta, nem tive problema com meu cabelo crespo, sempre usei tranças tranquilamente, meu cabelo black e fui a língua afiada da sala. Não permitia que ninguém me diminuísse pela cor da minha pele. Tudo isso devo ao Ilê. No Ilê, pude acompanhar palestras, programas. Na Noite da Beleza Negra pude ouvir Arani Santana falar sobre a importância de ser mulher negra, sobre a beleza da mulher negra. Na fase da adolescência em que as meninas negras são preteridas, eu fui preferida. Fui paquerada, me senti desejada. Obviamente isso fez toda a diferença para mim no período da minha adolescência. Lógico que era um baque quando estava em outros ambientes e perceber que era preterida, mas eu tinha um ambiente para chamar de meu em que era valorizada, que eu podia ouvir uma letra de música e me perceber naquela letra o meu jeito de ser, com a minha cor, minhas ancas largas, não só eu mas toda mulher que frequentava e frequenta o Ilê.

Geledés – Quais lembranças traz de sua infância e adolescência dessa convivência com o bloco?

Lembro-me dos ensaios na rua, dos festivais da criança (há mais de 20 anos o Ilê promove no dia 12 de outubro no Curuzu). Enquanto meus amigos faziam uma programação familiar, eu fazia uma comemoração familiar na comunidade, passava o dia brincando, ganhava várias lembrancinhas. Lembro- me ainda das saídas do Ilê. E também de quando , aos 19 anos, em 2009, minha avó faleceu e foi o primeiro carnaval que vi de foracoincidentemente aquele foi o último carnaval que ela fez, já que ela faleceu em setembro e o carnaval acontece entre fevereiro e março. Sempre via da sacada e esse ano queria entender a magia do Ilê, que faz com que tanta gente venha até Salvador se aglomerar para ver esse ritual. Queria ver do ângulo que essas pessoas veem. A partir daquele ano, só vejo a saída do Ilê deste lugar. Tenho diversas lembranças da Beleza Negra na Associação Atlética da Bahia, de ver diversos artista pretos com Elza Soares junto com minha família em um ambiente nosso. Não pra dizer onde a história do ilê comigo. Eu sou o que sou porque o Ilê existe. E não estou sozinha. O nosso trabalho é um trabalho em conjunto, com as minhas primas, os meus tios. Somos uma comunidade. Não sei o que seria da minha vida, como seria minha experiência enquanto mulher preta dentro desse país tão racista se não fosse pelo Ilê.

Noite da Beleza Negra diz às mulheres pretas sobre a beleza delas e que elas podem ser o que quiserem. É um concurso de beleza, mas fala muito além dela. Ele diz à mulher preta que ela pode dominar o mundo.

Foto: Richner Allan

Geledés – O Ilê realiza a Noite da Beleza Negra. Qual a relevância deste concurso para as mulheres negras?

É enorme para quem participa. Não apenas para as 15 concorrentes de Deusa do Ébano, mas também para quem está na plateia e assistindo pela tevê (há mais de dez anos, a TVE Bahia transmite a Noite da Beleza Negra). É o que o Ilê faz desde sempre. Hoje, graças aos orixás, mulheres como Thaís Araujo, Cris Viana, Gabi Amaranto e outras estão na tevê, muito mais de quando eu era pequena. Isso é maravilhoso. O Ilê já fazia isso quando não era moda. O concurso diz às mulheres pretas sobre a beleza delas e que elas podem ser o que quiserem. É um concurso de beleza, mas fala muito além dela. Ele diz à mulher preta que ela pode dominar o mundo. Ao longo desses anos, a gente percebe que temos rainhas, com diversos jeitos e características. São rainhas empregadas domésticas, manicures, e outras que têm doutorado e são secretárias executivas. Não importa o que você seja, mas irá passar pelas mesmas questões, pelas mesmas coisas.

Geledés – Você fez o documentário Outra Facejustamente sobre o concurso Noite de Beleza Negra. Por que escolheu este tema e como foi recebido pelo público afrodescendente?

Escolhi fazer esse documentário quando eu estava fazendo o meu TCC na faculdade. Teve momento que eu não sabia se queria fazer algo tão pessoal como o Ilê. Foi quando minha prima Catarina, que foi crucial para que eu fizesse esse filme, me disse assim: “se alguém não falar sobre as nossas coisas, alguém vai falar. E talvez esse alguém não fale com o pertencimento e a propriedade que a gente tem”. Mas até então, eu não sabia qual tema escolher. Até que uma menina chamada Lumena, bem tímida e que não era envolvida com as questões raciais, resolveu concorrer ao concurso da Beleza Negra. Ela foi para a final, não ganhou, mas Lumena mudou. E aí senti que eu tinha que falar sobre essa mudança nas pessoas que concorrem ao Beleza Negra. A minha primeira exibição do filme foi emocionante. Eu apresentei na UFBA, que é extremamente racista. Estavam lá minha família, as participantes do Beleza negra, o pessoal do Ilê.

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