O maior vencedor da história

Enviado por / FonteUOL, por Julianne Cerasoli

Lewis Hamilton virou tudo o que um piloto de Fórmula 1 “deveria ser” ao avesso. E também está redefinindo o livro de recordes da categoria. Em um mundo em que pautas de sustentabilidade ganham espaço em detrimento de corridas de carros, ele, um piloto de F1, consegue um lugar entre as personalidades mais influentes do mundo, segundo a lista da revista norte-americana Time. Se dos anos 70 para os 90, a categoria viu a transformação do culto ‘bon vivant’, garanhão, que aceitava correr riscos mesmo que isso significasse morrer na pista, o inglês é o avesso de tudo isso. E acaba de se tornar o maior vencedor da história da categoria.

Aos 35 anos, Hamilton chega à vitória de número 92 na carreira e está muito perto de conquistar seu sétimo título mundial — igualando-se a Michael Schumacher — sem ter protagonizado grandes episódios que coloquem sua índole sob judice. É considerado duro, porém justo nas batalhas com os rivais na pista. Gosta da badalação dos famosos e do universo da moda e da música, mas nunca se envolveu em confusão por isso ou quis cultivar a imagem de garanhão entre as mulheres.

E, mais importante, o primeiro negro a disputar uma corrida de Fórmula 1 tornou-se o maior vencedor nos 70 anos de história da categoria ao mesmo tempo em que luta para fazer a diferença fora dela. Defendendo pautas de inclusão e diversidade, provocando uma discussão sobre racismo que o automobilismo provavelmente jamais teria se não fosse ele e desafiando quem acredita que um piloto de F1 não pode, também, ser um ambientalista, Hamilton usa seu dom nas pistas como plataforma para provocar mudança em uma intensidade que nenhum outro piloto na história fez antes dele.

O que está claro para mim é que, embora seja legal ter todas essas vitórias, o mais importante é o que você faz fora do carro. Acho que é assim que o verdadeiro impacto pode ser feito. Em relação a ser lembrado, eu nunca tive essa vontade. Tomara que meus fãs se lembrem de mim como alguém que é um bom ser humano, que realmente se importa com o mundo e que fez o que fez com a melhor das intenções. Não é importante para mim ser lembrado como o melhor.”

Plataforma para gerar mudança

Não foi um processo fácil a caminhada de Hamilton desde que era um “estranho no ninho” até se tornar um catalisador de mudanças no esporte, tanto abrindo a discussão sobre a falta de diversidade, quanto discutindo pautas ambientais. Quando o inglês estreou na categoria, aos 22 anos, em 2007, pela então sisuda e conservadora McLaren, até evitava tocar em temas raciais. Dizia que não queria ficar marcado apenas como o primeiro negro da categoria.

Foi necessário primeiro ir para a Mercedes a mudança de postura. A equipe lhe permitiu firmar contratos que cada vez mais lhe davam autonomia para tocar seus projetos extra-pista. A voz de Hamilton ia ganhando mais importância à medida que colecionava vitórias. Assim, ele passou a ser mais atuante, levantando bandeiras relacionadas à diversidade e ao ambientalismo, tema em que se aprofundou depois de se tornar vegano, em 2017.

Mas como um piloto de F1 pode ser ambientalista? Hamilton explicou ao UOL Esporte. “Pelo menos estou iniciando a discussão a respeito disso. Eu nunca tinha sido perguntado sobre o assunto em toda a minha carreira. Isso mudou agora, e é positivo. Eu respeito totalmente as pessoas que têm opiniões negativas porque eu sou piloto. Mas lembrem-se que, se eu não corresse e mencionasse essa questão, ninguém me ouviria. Faço o que eu faço porque amo, mas também porque acho que isso pode criar uma plataforma para eu gerar mudança.”

Imagem: Bryn Lennon/Getty Images

Pai de Hamilton o ensinou ignorar o racismo e “responder nas pistas”

A questão racial obviamente fez parte da vida de Hamilton desde a infância. Os negros são minoria no Reino Unido, especialmente, nas pistas de kart. O piloto foi ensinado pelo pai, Anthony Hamilton, que era melhor engolir os insultos e “responder na pista”. “Quando eu comecei, segui o conselho do meu pai para trabalhar dobrado, não revidar, fechar a boca e deixar que a minha pilotagem falasse por mim. Era só quando eu estava de capacete que eu me sentia livre para ser eu mesmo.”

A mentalidade de Hamilton começou a mudar quando ele rompeu com o pai, em 2011, e entrou em contato com um mundo completamente diferente, dentro do círculo da então namorada, a cantora norte-americana Nicole Scherzinger.

Foi naquele ano, inclusive, que fez sua primeira menção clara ao racismo na F1, após ser punido durante o GP de Mônaco. Perguntado por que achava que tinha recebido a punição, ele disse: “É porque eu sou negro. O Ali G que me disse. Eu não sei”, respondeu, referindo-se ao comediante canadense de origem iraquiana. Na época, a declaração causou um furor, especialmente na mídia britânica, que culpava as novas amizades do outro lado do Atlântico pela mudança de comportamento. Hamilton chegou a se desculpar pelo comentário. Mais uma vez, tratava-se de um atleta questionando o racismo e sendo repreendido em vez de ouvido.

É por isso que Hamilton só começou a tratar o tema com mais intensidade nos últimos anos, quando passou a ficar claro que, estando a bordo da Mercedes e cometendo pouquíssimos erros, era uma questão de tempo até que ele se tornasse o piloto mais vencedor da história da F1.

Inspirações: Ayrton Senna, Muhammad Ali e Nelson Mandela

Imagem: Dave M. Benett/Getty Images

Sem referências negras no automobilismo, Hamilton sempre citou Ayrton Senna como o piloto em que se inspirou na infância. Quando superou as 65 poles do brasileiro, no GP do Canadá, ele ganhou da família Senna um capacete, O inglês ainda se emocionou quando teve a chance de pilotar o MP4/4, um dos melhores carros da história, com o qual o brasileiro venceu seu primeiro campeonato, em 1988.

Fora das pistas, Hamilton costuma citar Muhammad Ali, outro ativista antirracista, como referência. Com várias tatuagens pelo corpo, ele tem uma em homenagem ao pugilista. “Acredito que Muhammad Ali foi o maior ícone do esporte na história. Ele sempre foi alguém que eu admirei. Ele me inspirou muito ao longo da minha vida. E é por isso que fiz a tatuagem.”

Hamilton também tem tatuado um grande crucifixo nas costas e os dizeres “Still I rise” (ainda assim, eu me levanto), que acabou virando seu lema e é um dos detalhes que ele mantém em seus capacetes. Trata-se de uma referência ao poema da escritora norte-americana e ativista pelos direitos civis Maya Angelou.

Além disso, o inglês sempre citou Mandela como uma grande referência. Em 2008, o inglês se encontrou com o líder sul-africano, que morreu em 2013. É curioso notar que Hamilton raramente cita pessoas do próprio país como inspirações. Também chama a atenção o fato de ele não ter sido condecorado com o título de Sir pela monarquia britânica. Desde 2008, quando conquistou o primeiro mundial, Hamilton tem o título de OBE (Ordem do Império Britânico), mas a ausência de condecorações maiores já gerou especulações de que ele tenha rejeitado a nomeação.

Eu vi Ayrton quando criança e, naquela época, não entendia e não apreciava aquilo porque ainda não tinha passado por essa situação. Mas ele teve um impacto tão grande, movia toda uma nação. E não apenas um país, como pessoas ao redor do mundo todo. Ele me tocou profundamente e me levou a fazer aquilo que ele fazia.
Lewis Hamilton, sobre Ayrton Senna

Imagem: Mark Thompson/Getty Images

Revolução dentro da Mercedes

Imagem: Bryn Lennon/Getty Images

Com base nas suas convicções fora das pistas, o inglês promoveu sua “pequena revolução” dentro da Mercedes —começou por si próprio, vendendo seu jato particular. Convencida por Hamilton, a equipe foi a primeira da F1 a prometer neutralizar o carbono que emite. O inglês também conseguiu uma parceria para que eles não usassem mais garrafas plásticas, cobrou uma investigação interna sobre diversidade (na qual a Mercedes descobriu ter somente 12% de mulheres e 3% de não-brancos em uma organização de mais de 1000 pessoas) e um plano de ação. Por influência do inglês, a Mercedes ainda mudou sua identidade visual do clássico prateado para o preto nos carros e macacões.

Paralelamente, fez o mesmo com a Fórmula 1, o que ajudou a acelerar um projeto de promoção da diversidade na categoria, chamado We Race as One (corremos como um só, em inglês).

Antes de cada corrida, Hamilton também comanda protestos antirracismo. Ele não conseguiu convencer todos os pilotos a se ajoelhar nos atos e, como barreira, viu a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) proibir o uso de camisetas no pódio após uma manifestação sua no GP da Toscana.

E como se estivesse vestido de Pantera Negra (com o uniforme preto da Mercedes), que o piloto bateu dois recordes de Schumacher neste ano — número de pódios e vitórias, sendo que o de poles ele já havia batido em 2017 — e está próximo de igualar seus sete títulos. Ainda que, dentro da pista, não exista muito mais o que conquistar. Fora dela, Hamilton está no começo.

Carreira de Hamilton em números

  • Seis títulos mundiais
  • 92 vitórias
  • 97 poles
  • 57 vitórias largando da pole
  • 161 pódios
  • Vitórias em 28 pistas diferentes
  • 157 largadas na primeira fila
  • 22 corridas lideradas do começo ao fim
  • Melhor estreante da história – Nove pódios nas nove primeiras provas, quatro vitórias e seis poles

Relacionamento com o pai

Imagem: Mark Thompson/Getty Images

Entre os personagens mais importantes da vida e da carreira de Hamilton está o pai dele. Filho de imigrantes caribenhos da ilha de Granada, Anthony Hamilton separou-se da mãe do piloto quando ele tinha dois anos, mas desde a infância Lewis optou por morar com ele.

Anthony fazia as vezes de mecânico e empresário nas corridas das quais o filho participava ao redor da Inglaterra, com equipamentos de segunda mão e muito questionados sobre o que aquela família negra estava fazendo ali. Anthony seguiu como empresário do filho até a Fórmula 1, mas os dois romperam relações (profissionais e pessoais) em 2011. Demorou alguns anos para que Anthony voltasse a frequentar as pistas, mas hoje eles têm ótima relação, ainda que o pai não tenha voltado a cuidar de sua carreira.

Em fevereiro deste ano, Hamilton publicou uma foto com o pai no Twitter e comentou a relação tumultuada com Anthony. “Nossa jornada não tem sido fácil. Estamos enfrentando muitos obstáculos tanto individuais como em família. Meu pai e não temos tido um relacionamento próximo. Ele trabalhou para criar uma oportunidade para nós como família e, por causa dele, eu estou aqui hoje. Buscando por sucesso com toda a pressão colocada na gente. Nós estivemos tão focados em busca do sucesso que perdemos a noção do que era realmente importante: a nossa relação”, escreveu.

O piloto ainda comentou que, nós últimos anos, os dois se reaproximaram e que ele ficou muito feliz ao passar um tempo com Anthony durante as férias.

Meu pai me trouxe tanta felicidade. A família é a coisa mais importante do mundo. Você não pode escolher sua família, mas pode fazer dar certo com eles não importa as suas diferenças. Eles estarão lá com você não importa o que acontecer
Lewis Hamilton

Personagens da carreira de Hamilton

Imagem: Lars Baron/Getty Images

O inglês costuma citar o alemão Nobert Haug como uma das pessoas que mais apostaram nele. Haug era chefe da divisão esportiva da Mercedes quando eles contrataram Hamilton para o programa de jovens pilotos. Assim, Lewis passou a correr por equipes melhores no kart, e depois teve uma carreira cuidadosamente desenhada, passando pela Fórmula 3 europeia e GP2 até chegar na F1.

Outro que teve papel importante na vida de Hamilton é Ron Dennis. O ex-chefe da McLaren entrou para a vida do inglês ainda na infância, quando o garoto lhe disse que o sonho dele era correr pela McLaren. Três anos depois, o empresário chamou o britânico para um programa em parceria com a Mercedes e tornou-se a pessoa que o levou para a F1 mais de dez anos mais tarde.

Apesar de ter começado em meio a muita desconfiança de ambas as partes, Nikki Lauda e Hamilton se aproximaram quando o ex-piloto o convenceu a trocar a McLaren pela Mercedes. Lauda se tornou muito importante para a segunda — e extremamente vitoriosa — parte da carreira de Lewis, que sentiu bastante a morte do ex-piloto ano passado.

Toto Wolff e Peter Bonnington

O chefe da Mercedes, Toto Wolff, é outra peça fundamental na carreira de Hamilton. Ele percebeu que o piloto se energizava ao invés de perder o foco com suas viagens e compromissos no mundo da moda, por exemplo, ou com a criação mais recente de uma comissão de diversidade com o nome dele. E o crescimento dele em questões extra-pista, na verdade, acabou ajudando sua evolução dentro da pista.

Outro que tem papel importante na carreira de Hamilton é o engenheiro de pista da Mercedes, Peter Bonnington. Último elo entre equipe e piloto, “Bono” é responsável por interpretar o que o inglês quer em termos de acerto e direcionamento de desenvolvimento do carro e o guia durante as corridas. Com 20 anos de experiência na F1, o ex-engenheiro de pista de Schumacher na Mercedes demonstra grande sensibilidade para entender as reações de Hamilton e saber como reagir.

Círculo fechado

Imagem: Dan Istitene – Formula 1/Formula 1 via Getty Images

Os personagens mais próximos de Hamilton sem dúvidas são a treinadora Angela Cullen e o ex-piloto Marc Hynes.

Hamilton passou a trabalhar com a treinadora de performance depois que ela entrou na equipe do finlandês Aki Hintsa, velho conhecido do inglês por sua relação com a McLaren. Pelo método Hintsa, usado por Cullen, o bem-estar gera a performance. Então a atuação da neo-zelandesa, que se tornou como uma irmã para Hamilton, foi além do físico e focou no incentivo para que ele buscasse o que era importante para si. Outra mudança importante provocada por Angela Cullen foi na dieta de Hamilton, que se tornou vegano por influência dela e, a partir daí, passou a estudar mais de perto questões ambientais.

Outro amigo bem próximo de Hamilton é o ex-piloto Marc Hynes. Eles se conhecem há mais de 15 anos, e o britânico foi treinador de pilotagem de Lewis. Hoje, ele é uma espécie de agente e conselheiro. A proximidade é tanta que o filho de Marc, Hiero, é afilhado de Hamilton.

Além de Marc e Angela, o piloto conta com a companhia do cachorro Roscoe nos GPs afetados pelo coronavírus em 2020.

Grandes rivais

 

Até onde ele pode chegar?

É uma pergunta que depende de dois fatores: de quantos anos será a renovação do contrato que acaba no final de 2020 com a Mercedes e como a equipe vai lidar com a revolução nas regras de 2022. Deve-se levar em consideração que essas regras vão tentar diminuir a vantagem da Mercedes em duas maneiras: com a determinação de um teto de gastos, que deve representar um corte de cerca de US$ 100 milhões do orçamento, e a redução no tempo disponível para o desenvolvimento aerodinâmico no túnel de vento (pela regra que entra em vigor em 2021, quem tiver uma posição melhor no campeonato tem menos tempo no túnel de vento no ano seguinte).

Como as regras não mudam de maneira significativa no ano que vem, é possível que Hamilton chegue ao oitavo título e supere as 100 poles positions (algo que pode fazer ainda neste ano) e as 100 vitórias.

Fora das pistas, projetos como a comissão de diversidade, que está sendo formada por ele e sua equipe no Extreme E, e o campeonato com carros elétricos off-road, que busca chamar a atenção para as consequências do mau uso do meio-ambiente, dão a tônica do caminho futuro do maior vencedor da história da F1.

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