O marketing do ódio e o fim da política

O marketing político é um dos maiores entraves à democracia que enfrentamos atualmente, e não damos suficiente atenção ao fenômeno. Explico.

Por Guilherme Spadini Do Brasil Post

Um pré-requisito básico para toda sociedade que tenha a liberdade como um valor é a crença na capacidade de seus indivíduos de tomar decisões.

Se essas decisões são realmente livres, é uma dúvida genuína. Em neurociência, sabemos muito bem que decisões são influenciadas por diversos fatores inconscientes. Em sociologia, propõe-se que classe social, ou estruturas de poder, determinam nossas decisões. Mas, mesmo assim, repito: é um pré-requisito da sociedade livre que confiemos na capacidade das pessoas de tomar decisões. Sem isso, sempre haverá alguém, ou algum grupo, que se sentirá no direito de decidir por elas.

Por isso, em uma tal sociedade livre, em que ninguém tem o direito de impor suas ideias, o convencimento é a forma legítima de arregimentar simpatia. Eu não posso proibir ninguém de levantar uma faixa “Intervenção Militar”, nem “Fica Dilma”, mas posso tentar convencê-los a mudar de ideia.

Os gregos antigos – que estavam longe de uma sociedade livre, mas tinham seu arremedo de democracia – já reconheciam isso. Os famosos sofistas, adversários de Sócrates nos “Diálogos”, eram os especialistas da época em convencimento. Lecionavam a arte da retórica: o uso de argumentos não com fins à verdade, como faria a filosofia, mas para vencer discussões e convencer as massas. Os sofistas eram muito valorizados. Fazia parte da boa educação do homem público aprender a discursar e torcer a lógica a seu favor.

Os truques sofistas ainda são usados, mas, hoje, são parte pequena do arsenal do convencimento. O marketing é toda uma ciência e uma arte que vem se desenvolvendo e profissionalizando há décadas com o objetivo de convencer pessoas. Seu uso político, ubíquo e óbvio, é uma ameaça silenciosa.

O marketing político acaba com qualquer possibilidade de discussão de ideias. Nenhum candidato pode vir a público falar o que pensa. Antes tem de passar pelo crivo do marqueteiro: que roupa pode usar, qual o tipo de música da campanha, qual a plataforma a ser defendida, o corte de cabelo, a cor do fundo, o lado em que bate a luz. Como saber em que alguém realmente acredita? É impossível! Como escreveu Vargas Llosa:

“A política passou por uma banalização (…), o que significa que nela a publicidade e seus slogans, lugares-comuns, frivolidades, modas e manias, ocupam quase inteiramente a atividade antes dedicada a razões, programas, ideias e doutrinas. O político de nossos dias (…) será obrigado a dar atenção primordial ao gesto e à forma, que importam mais que valores, convicções e princípios”.*

Isso já é grave o suficiente, por substituir a política pelo espetáculo, e por criar uma aura de falsidade e desesperança que contamina nossa experiência da vida pública. Mas, ainda pior, isso subverte o pré-requisito básico da sociedade livre. Quando o uso de artifícios de marketing se torna fundamental, deixamos de confiar na capacidade de decisão dos indivíduos. Paira dúvida sobre a legitimidade da voz pública, que acreditamos estar cooptada por ilusões publicitárias. É a vitória final da forma sobre o conteúdo, que acontece na cultura em geral, mas é gravíssima na política.

As estratégias de marketing funcionam porque, de fato, somos menos livres do que gostamos de imaginar. Elas são embasadas em conhecimentos científicos sobre o funcionamento da mente humana e como tomamos decisões. Ainda assim, ou confiamos na liberdade de cada indivíduo, e a respeitamos como um valor, ou acaba a democracia. É uma questão de ética, não de ciência.

Estamos vivendo um fenômeno político no Brasil. Especialmente desde as manifestações de 2013, e ainda mais desde as últimas eleições. Tem-se a impressão de que voltamos a dar valor à política, a debater e sair às ruas. Mas nada disso ocorre de fato. Quase dois milhões de pessoas na rua é a voz legítima de alguma coisa, mas ninguém sabe ainda de quê. Dois milhões fizeram um belo espetáculo, mas será que fizeram política?

Agora, se o marketing político não vende ideias, se o seu produto não é a política propriamente dita, o que ele vende então? Simples: ódio. Um dos produtos mais fáceis de se vender, e que nós estamos comprando como se fosse o último smartphone. Para quem é de esquerda, nada mais óbvio do que o ódio destilado nas últimas manifestações: a ditadura, a ultra direita, os xingamentos contra Dilma; para quem é de direita, nada mais óbvio que o ódio promovido pelo PT: a luta de classes, a elite coxinha, Lula afirmando em palanque que Aécio pisaria em pobres. O que não fica óbvio para ninguém é o quanto esse marketing do ódio só serve para que ninguém fale de política. O governo, que se vende como progressista, contrário ao “poder da elite”, acusa o uso do ódio como forma de manutenção desse poder. Mas, obviamente, o governo está no poder, e usa o ódio da mesma forma. A quem serve o ódio, então? Ao governo ou à oposição? Aos pobres ou aos ricos? Aos conservadores ou aos progressistas? Serve a todos eles, só não serve para você, tonto, que é o consumidor final desse produto. Você compra achando que é política, mas leva totalitarismo.

E o que precisa para que o espetáculo desses dois milhões de pessoas insatisfeitas seja política de verdade? Precisa daquilo que mais aprendemos a odiar: políticos. Onde está a oposição? Onde está a tal da “terceira via”? Onde está Marina, por exemplo, a mais óbvia vítima do ódio político dos últimos tempos? Onde estão as pessoas que poderiam apontar novos caminhos?

Eu sei onde estão: reunidos com seus marqueteiros, esperando a opinião pública ficar mais clara para que eles possam correr atrás de popularidade. Enquanto for assim, a política está morta.

+ sobre o tema

O Brasil deveria comercializar o que tem de melhor: o seu povo

Ouvi no rádio um moço – que falava muito...

Em carta a Dilma, MPL lembra de índios e pede diálogo com movimentos sociais

Convidado para reunião com a presidenta, Passe Livre pediu...

Movimento negro cobra auxílio emergencial de R$ 600 e vacina para todos pelo SUS

Nesta quinta feira (18), a Coalizão Negra por Direitos,...

para lembrar

Brasil quer levar desigualdade e impostos para a mesa de discussão do G20

O governo brasileiro pretende levar para a mesa de discussão do G20 os efeitos da desigualdade e sua relação como a política econômica e...

Primeira mulher trans a liderar bancada no Congresso, Erika Hilton diz que vai negociar ‘de igual para igual’

A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) foi aclamada nesta quarta-feira como líder da bancada da federação PSOL-Rede, que hoje conta com 14 deputados, se tornando a...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=