O (não) lugar da mulher negra nas campanhas publicitárias

Uma recente propaganda promovida pela prefeitura de Fortaleza teve a intenção de fortalecer o conceito de família como instituição democrática, inclusiva e livre de dogmas e preconceitos. Dentro desse conceito, a composição familiar deve se formar a partir de laços que nascem do amor e do carinho, da vontade de dividir a vida com alguém que se tem afinidades, da necessidade de uma companhia que traga aconchego e proteção, e já sabemos, ou pelo menos deveríamos saber, que esses elementos não dependem da orientação sexual, da classe social, da raça ou etnia, da religião, etc. Enfim, amor nasce livremente e deve ser expressado e vivenciado como as pessoas acharem melhor. Ou pelo menos deveria ser assim.

Por Joice Berth, do Justificando

Ponto para a prefeitura de Fortaleza, que se dispõe a trazer essa discussão tão necessária. Em tempos de cães raivosos e de mentalidade apodrecida, regurgitando no Congresso Nacional seus preconceitos e pequenezas, forçando a barra para institucionalizar com respaldo da legislação (porque sem esse respaldo a institucionalização já é um fato) atrocidades que garantiriam nosso retrocesso social, é mais que oportuno que os canais de comunicação entre sociedade e poder público estabeleçam um diálogo e, saber o posicionamento desses órgãos, é mais que urgente.

Mas a arte visual utilizada para abrir essa discussão cometeu uma gafe histórica e infelizmente comum: a ausência de representação da mulher negra.

Por mais que os responsáveis pela campanha contestem e digam que isso é uma bobagem, uma coisa fica visível: o racismo institucional aliado ao machismo sistêmico é uma sinalização da cumplicidade da mídia com o número de mortes caracterizadas como feminicídio que aumenta entre mulheres negras.

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É muito fácil para uma pessoa branca padrão gritar que essa ausência não significa nada. Brancos se veem representados diariamente num ciclo de informações positivas a respeito de sua autoimagem, que favorecem totalmente sua inserção na sociedade e a permanência da sua aceitação em todos os lugares, que em geral são ocupados por outras pessoas brancas com o mesmo sentimento de autovalorização e poder pessoal.

Sendo assim, a pessoa branca se ama, se aceita e se abre positivamente para os seus iguais, garantindo lugares de destaque ou aplaudindo aqueles que se destacam, porque enxergam nele um pouco de si mesmos. Imagina se neutralizarmos esse ciclo, suprimindo a participação maciça de brancos em todos os meios de comunicação. E se repetíssemos isso por anos, décadas, séculos. E se aliássemos essa ausência a uma campanha sutil e com potencial altamente influente nas mentalidades sociais, recheadas de informações negativas, repito: muito sutilmente, pois nesse caso a sutileza é a chave da eficiência, afinal, ninguém quer ser racista neste país.

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É isso que fazem com as demais raças, especialmente com a raça negra. Somos, desde o berço, bombardeados por informações negativas a respeito de nós mesmos, implantadas no imaginário social, sutilmente, com total aderência da mídia e nenhum questionamento da população. Ninguém, sendo branco, acha incomum a ausência de negros nos espaços que eles ocupam.

Então temos o seguinte quadro imagético e atuante: Não mostramos negros felizes, limpos, unidos, inteligentes, capazes e vencedores e, quando mostramos, será em ínfima quantidade, garantindo que a representação esteja imbuída de alguma sinalização negativa ou um posicionamento desfavorável.

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Nas propagandas de tv, fotos de revistas e catálogos comerciais, quando existe um negro, o enquadramento está desfavorecendo sua presença. Ele está geralmente no canto da imagem, ou em um plano recuado, atrás de todos os outros brancos felizes e vencedores. O sorriso é sempre contido e a postura corporal é sempre incompreensível do ponto de vista da linguagem (sim, o corpo fala e diz muito!).

Nos jornais, as manchetes SEMPRE que se referem a uma pessoa negra, usam de um requinte que só os mais atentos percebem, para induzir o leitor a formar (ou manter) os estereótipos que acompanham a negritude desde sempre. A pessoa negra é sempre “acusada” de algo, a pessoa branca “suspeita” de cometer um “suposto” crime. Isso seria apenas curioso não fosse o estrago que causa. Isenta a pessoa branca, mesmo que todas as evidências apontem para a culpa dela, e condena a pessoa negra mesmo que todas as circunstâncias apontem para a inocência. A pessoa branca sempre tem nome, a pessoa negra não.

Poderia listar mais um arsenal de truques midiáticos para a desqualificação do indivíduo negro aos olhos da população, mas me atenho ao caso específico da prefeitura de Fortaleza.

O apagamento da mulher negra na propaganda é um erro recorrente. A mulher negra é a maior vítima da opressão sistemática que atinge as chamadas minorias sociais, uma vez que somam duas opressões: racismo e machismo, o racimachismo.

Homens negros sofrem com o racismo, mulheres brancas sofrem com o machismo, mas a mulher negra tem que lidar com ambos ao mesmo tempo. Duas covardias, estrategicamente aliadas, condenando mulheres ao ostracismo social que acaba por corroborar com todas as tipologias de violência que se pode praticar contra alguém: física, psicológica, institucional, simbólica, sexual, etc.

Nosso lugar, enquanto mulher negra, é um não-lugar. É a condição de suporte social estático e pronto para acolher os lixos emocionais que nos é depositado. Ou ainda, somos as atenuadoras e realizadoras das distorções sexuais que homens carregam em si, em decorrência das imposições machistas que eles mesmo produzem. Daí surge o mito da mulata fogosa e da mãe preta.

Esse apagamento social que pode ser observado em todos os lugares e que tem total conivência da população e o apoio midiático generalizado, faz com que nosso “corpo público” ou nossa “existência de suporte” seja o espaço vivo da sociedade onde se pode tudo, inclusive ser dizimado, eliminado, suprimido e violentado quando as funções básicas de mãe preta e negra fogosa já não tenha mais razão de existir. Sim, nos matam quando já sugaram todas as possibilidades que os estereótipos nos delegam.

Haja visto os resultados do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. O feminicídio (assassinato por motivação de gênero) entre mulheres negras subiu para 54% na última década. Entre mulheres brancas, caiu 9%, embora os números ainda sejam alarmantes. Mas se a queda de 9% dos assassinatos de mulheres brancas não significa muito, imaginem então o aumento de 54% dos crimes fatais contra mulheres negras.

Os meios de comunicação e o poder público são responsáveis diretos por esses números, e estou falando dos crimes contra mulheres de todas as etnias, mas sobretudo das mulheres negras (e indígenas). Os meios de comunicação, grosso modo, nos tiram a dignidade nos negando uma representação honesta e participativa. E já estamos cansadas dessa condição. Por isso existe um feminismo negro, porque essas pautas não são abordadas por feministas brancas.

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Na verdade, a alta intelectualidade do país é prioritariamente racista. Tanto que rechaçou o apontamento da supressão da mulher negra em uma propaganda que tem a função de frear os preconceitos quanto a formação das famílias, uma vez que o Congresso Nacional, em uma atitude de total imbecilidade decretou que só é família a composição tradicional baseada na heterossexualidade.

Se a bestialidade do Congresso é gritante, a da prefeitura de Fortaleza é igualmente execrável, hipócrita e propagadora de preconceitos seculares e do racismo institucional que tanto atrapalha a vida da população negra.

Representam o homem negro formando família com uma mulher branca (ou de pele clara), o que é subentendido como uma sugestão de embranquecimento da pessoa negra.

Esse embranquecimento vem sendo incentivado e promovido pelos meios de comunicação, que dizem nas entrelinhas que a pessoa negra precisa se unir a uma pessoa branca para poder “se melhorar” e ter acesso ao mundo vitorioso da branquitude. Jogadores de futebol famosos e artistas do pagode em geral caem nessa, tendo em vista que a pessoa negra tende a internalizar o racismo que sofre. Ora, de tanto ouvir a branquitude anunciar aos quatro cantos que eu enquanto ser humano negro não tenho valor, ao mesmo tempo que exalta as infinitas vantagens de se ter a pele branca, como resistir e persistir na autoestima?

Obviamente, não julgo relações inter-raciais, embora essas devam ser analisadas com todo critério pois, a priori, são frutos da fuga do homem negro de sua própria negritude.

Isso é fato visível e comprovado: homens negros têm preferido mulheres brancas e preterido mulheres negras como eles. O truque da branquitude para eliminar a pessoa negra da sociedade e em alguns casos, manter a concentração de riquezas nas mãos da população branca, vem surtindo efeitos assustadores.

E a propaganda pela diversidade da família, promovida pela prefeitura de Fortaleza, é abusiva, cínica e intencional, porque se eu me lembro do homem negro, como esqueceria que a mulher negra existe? Eles colocam sete exemplos e em nenhum deles cabe uma mulher negra? Ou será que eles têm a convicção de que mulher negra não forma família ou serve apenas como reprodutora sexual, a chamada parideira?

É fato que, entre mulheres negras, a maternidade solitária é muito mais comum. Existem um número maior de mulheres negras, mães solteiras, do que de mulheres brancas e isso também é um reflexo dos estereótipos que carregamos. Homens em geral assimilam e reproduzem nossa função de mulata fogosa e mãe preta, preterindo a possibilidade de manter uma relação séria e pública. É também uma forma de violência, a violência afetiva, também letal pois colabora com o aumento da ocorrência de depressão entre mulheres negras, pois sabemos que amar e ser amado, de verdade, fortalece o ser humano em todos os aspectos.

Durante séculos, essas violências racimachistas foram engolidas e toleradas por mulheres negras, num processo de resignação ou resiliência forçada, que afetou e muito todas as instâncias de nossas vidas. Mas, nós, mulheres negras, estamos saindo de um processo profundo de auto-amor, que tem ajudado a muitas de nós no fortalecimento da autoestima e na revogação do lugar baixo que a sociedade reservou para nós.

Já que não temos onde desfrutar do bônus afetivo (ainda que questionável) que mulheres brancas padrão conseguem, reinventamos a rota, requalificamos nossas virtudes e com todas as dores e dificuldades estamos reescrevendo nossa história, redescobrindo a força de nossas antecessoras e dizendo não aos truques do patriarcado racimachista. O feminismo negro tem feito esse trabalho de resgate e valorização da mulher negra e desenhado outro lugar social para nós: o lugar da dignidade, da beleza, da suavidade e da inteligência estratégica.

É melhor que os meios de comunicação entendam isso, sob pena de passarem por um sutil boicote aliado a críticas duras e insistentes das feministas chatas e atentas, prontas para desmascarar a falácia que encobre o racimachismo.

Essa demagogia da prefeitura de Fortaleza, em outros tempos passaria despercebido pela maioria, mas hoje não mais. Hoje temos vozes potentes para denunciar esses truques que promovem nossa exclusão e desvalorização.

A marcha continua e estamos de olho. E não vão nos calar

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