Não me lembro exatamente como entrei em contato com a obra de Cristiane Sobral, me recordo, apenas, que foi logo no início do meu interesse pela literatura negra, folheando as páginas dos Cadernos Negros.
Por Bianca Gonçalves, do Lugar de Mulher
Em seguida, me deparei com um poema incrível intitulado Não vou mais lavar os pratos, cuja voz lírica se impõe diante de seu interlocutor, homem, libertando-se do confinamento do espaço doméstico e reivindicando o lugar recém-descoberto das letras; justamente aquela que, depois de tantos anos alfabetizada, aprendeu a ler – como o próprio poema evoca. Quando o li, senti que o poema conseguiu captar o atual momento vivenciado por muitas mulheres negras: as primeiras da família a entrarem na universidade, as que se descobriram na poesia através de saraus , etc.
Nascia assim uma leitora de Cristiane Sobral.
Mês passado adquiri livros da autora: Espelhos, Miradouros, Dialéticas da Percepção (2011) e Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz (2014).
O primeiro, livro de contos, perpassa não somente o esperado da questão racial ou, ainda, a questão de gênero – mesmo que essa tenha sido erroneamente interditada às mulheres negras – mas parte, principalmente, de uma premissa introspectiva de modo a refletir aquilo que nos atinge coletivamente. Como a narradora do conto Pixaim, mulher negra que conta a história de seu processo de libertação dos alisamentos. Ou aquela que surge no conto Desabafo de Mulher, extremamente liberta e empoderada, narrando suas aventuras amorosas, dos flertes com desconhecidos ao pompoarismo. E também a personagem “desconhecida no bairro” relatada n’O último ensaio antes da estreia, que incorpora os dramas da vida lendo bulas de remédio sentada no vaso sanitário, enquanto aguarda o efeito da tintura de cabelo.
Já em Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz temos poemas engajados contra o racismo, a partir, sobretudo, da reconstrução da feminilidade da mulher negra, como ocorre no poema Estética, acrescidos de um tom (preto) amoroso, como em Espelhos Negros. Boa parte dos poemas fazem do cabelo crespo o ponto de partida lírica para a denúncia, firmando ao final seu empoderamento. Como ocorre no poemaAinda o pelo:
Cortei o cabelo
Agora meu cerebelo toca o céu
Cortei o cabelo
Paguei o aluguel sem esforço
Fiquei mais exposta ao plutônio
Mas ativei tanto meu neurônio que nem sei
Cortei o cabelo
Renasci
Liberta a faculdade dos cabelos
Do meu lado nenhum pelo
Nenhum tolo
Cortei o cabelo
Fiquei sem
Nota sem
Amém.
Bianca Gonçalves
É graduanda em Letras na USP, pesquisadora, professora e poeta. Atravessa pontes todos os dias. É feminista por sobrevivência. Escreve no blog minaexplosiva.wordpress.com