O ponto de contato entre Tabata Amaral e o bolsonarismo

Enviado por / FontePor Milly Lacombe, no UOL

Antes de mais nada, seria preciso definir o que considero ser o bolsonarismo.

Mas talvez antes do antes eu deva dizer que me oponho ferozmente a qualquer crítica machista e misógina feitas a Tabata Amaral, que tem o meu respeito enquanto mulher periférica que traçou trajetória improvável nesse país miserável e desigual.

Me obrigo a entender algumas de suas posições políticas se as relaciono ao pacto estabelecido entre ela e aqueles que a ela deram as mãos nesse voo feito entre a periferia e o “centro do mundo”.

Como nos comportaríamos se estivéssemos no lugar dela, tivéssemos recebido os apoios que ela recebeu para voar e, nesse cenário hipotético, ainda tivéssemos a idade dela: 24 anos?

Julgá-la e crucificá-la é tentador porque ela é mulher, jovem e ainda inexperiente na vida parlamentar. Alvo fácil.

Meu esforço aqui é para fazer a crítica política respeitando a pessoa e sua admirável jornada humana.

Uso Tabata Amaral porque acredito que ela represente melhor do que qualquer outro esse lugar fictício do “nem direita, nem esquerda” e que, por isso, ao fazer a crítica eu seja capaz de mostrar como essa narrativa do “não caio em polarizações” está mais perto do bolsonarismo do que longe dele.

Mas o que chamo de bolsonarismo?

O bolsonarismo é um sistema de governo que se sustenta em dois pilares.

O primeiro, apoiado em políticas altamente liberais que atuam na concentração de riqueza, na privatização de bens públicos, no incremento de práticas de austeridade e na tentativa de retirar qualquer laço de solidariedade social de nossas vidas.

Assim, o bolsonarismo aprofunda a lógica empresarial que autoriza que o chamado “sistema de gestão” possa invadir o interior das instituições: estado, hospitais, igrejas, escolas. Tudo passa a ser operado como se fosse uma empresa.

Sucateia-se o que é serviço público, vende-se a ideia de que o que era direito agora é privilégio e que é preciso se esforçar para ter e pagar para usar.

Pagar para entrar em parques, pagar pelo ensino público, pagar pela saúde pública etc. Encolhe-se o espaço público, alarga-se o privado.

A gestão como método sagrado de organizar o estado, as instituições, as organizações e até nossas vidas privadas. Você como empresário de si mesmo.

Alguns podem argumentar que a descrição acima seria apenas a do capitalismo neoliberal, e, quem fizer isso, estará certo.

Mas o bolsonarismo é também isso, e precisamos reforçar sempre seu caráter capitalista neoliberal.

Tentar esvaziá-lo de seu aspecto neoliberal é o que o mercado deseja de fato porque assim o salvador do horror vai se apresentar como o gestor do caos, aquele que traz com ele a lógica do Barão de Lampedusa: precisamos urgentemente mudar tudo para que as coisas permaneçam exatamente como sempre foram.

Mas existe uma segunda perna de sustentação do bolsonarismo.

Trata-se das práticas de exclusão de toda e qualquer pauta identitária, incluídas aí as das populações originárias.

A agenda econômica que o bolsonarismo propõe – impopular por princípio – se acoberta em uma teia de ações protofascistas, como a guerra contra a existência de outras formas de viver e de amar, e o alargamento da ideia de universalidade para sujeitos masculinos, brancos e que se comportam heterossexualmente.

O bolsonarismo vibra nesse ambiente de masculinidade tóxica, de violência, de pulsão de morte.

É aí que ele respira, que se refaz, que se regozija e se reproduz. É exatamente aí que ele goza.

São esses os dois os pilares que sustentam o bolsonarismo tão bem representados no Ministério da Economia e no dos Direitos Humanos.

Paulo Guedes e Damares Alves (que saiu, mas ainda simboliza os valores dessa administração) como o casal 20 do horror e do extermínio.

De um lado da moeda, o neoliberalismo. Do outro, o fascismo em estado bruto.

O que chamo de bolsonarismo é a articulação entre as duas coisas.

Tabata Amaral, que foi eleita contando com o meu voto, discorda corretamente da segunda parte do bolsonarismo.

Nesse ambiente, ela se alia aos movimentos identitários e dança a música do amor, do afeto e de um futuro colorido e inclusivo.

Mas o que a aproxima do bolsonarismo é justamente a associação entre ela e a ideia de que a lógica empresarial pode invadir todas as áreas de nossas vidas.

É na política-econômica de austeridade de Paulo Guedes que Tabata dá o dedo mindinho ao horror que se instalou.

De modo prático: Tabata apoia a reforma da Previdência, a privatização dos Correios, a PEC da reforma administrativa e do arrocho fiscal.

No dia 2 de junho, votou a favor projeto que autoriza instituições financeiras a promover a penhora de imóveis de famílias inadimplentes mesmo se esse for o único imóvel da família.

Depois das críticas que recebeu, fez um vídeo dizendo que havia votado errado por não ter entendido um pormenor técnico na pauta.

O voto “errado” soa estranho porque ele dá match com os outros votos dela, que reforçam e aprofundam as políticas neoliberais de Paulo Guedes.

Aqui faço uma pausa.

Não se trata de defenestrar Tabata Amaral. Muitos e muitas outras pessoas votaram como ela votou. Ela não é a única.

A questão é analisar seu comportamento político para conseguir enxergar que não existe esse ambiente no qual ela diz passear confortavelmente, que é o da “nem esquerda, nem direita”.

Meu argumento é o de que esse lugar é uma ficção política conveniente a muitos e cuja ilusão de existência nos mantém reféns do atual sistema.

Chamar Bolsonaro de fascista e de genocida, por mais preciso que possa ser, não nos ajuda a entender o que é o bolsonarismo, e muito menos a nos livrar dele.

Ao colocar o bolsonarismo apenas na conta da psicopatia e da maldade, livramos ele de seu pilar neoliberal e, assim, fica fácil se opor a ele no público e apoiá-lo no privado – como fazem tantos.

Agora, em embate com Eduardo Bolsonaro, Tabata cria a estética da opositora desse governo desumano, e isso é bom para ela.

Ao entrar em rota de colisão com os Bolsonaro, Tabata, estrategicamente, se finca nesses lugares fictícios do “nem esquerda, nem direita” e do “contra tudo isso que está aí”.

Mas há ainda uma outra autópsia que precisamos fazer do bolsonarismo.

Esses dois pilares que o sustentam – o do ministério que trava uma guerra contra o pobre (Paulo Guedes) e o do ministério que trava uma guerra contra a mulher (Damares Alves) – conversam de forma perversa porque quem vota a favor, por exemplo, da reforma da previdência e diz apoiar políticas LGBTQs e antirracistas estará sempre em contradição.

No Brasil, não se vota a favor de uma política que aprofundará desigualdades sem jogar ainda mais à margem negros, mulheres e LGBTQs.

São esses os grupos que sofrerão as consequências dessas reformas mais rapidamente, que morrerão mais cedo, que morrerão de tanto trabalhar, que ficarão mais pobres e vulneráveis.

Não existe, portanto, dizer ser antirracista e a favor da comunidade LGBTQ e ao mesmo tempo apoiar a reforma trabalhista, a reforma da previdência, o teto de gastos.

Hoje, me arrependo de ter votado em Tabata Amaral. Mas acredito que pessoas possam mudar. Acredito que ela possa se transformar e, assim, voar para ser uma longeva e importante figura pública de nossa história.

Tabata é jovem, tem uma jornada de conquistas importantes, veio de lugares improváveis para chegar onde chegou, é mulher e inteligente. As ferramentas estão aí.

Espero que ela as use de forma a, como pediu Paulo Freire, se apoiar em uma base ideológica que deixe de ser excludente para começar a ser inclusiva. E espero um dia poder voltar a dar a ela o meu voto.

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