O programa de rádio que ajudou a ‘ressuscitar’ crianças do genocídio de Ruanda

Esta é a história de três meninos quase perdidos para sempre em meio à onda de pessoas que fugiu do genocídio em Ruanda, em 1994.

Por Flora Drury, da BBC 

É também a história de como uma transmissão de rádio contribuiu para “ressuscitá-los”, possibilitando seu reencontro com suas famílias.

“Isso nos deu de volta a esperança”, diz Theogene Koreger à BBC, 25 anos após o desaparecimento de seus sobrinhos.

“A mensagem chegou aonde não conseguimos chegar – a BBC transmitiu mensagens que não conseguiríamos ter recebido de de outra forma”.

Esta história começa no final do genocídio em Ruanda. Cem dias de assassinato e estupro terminaram com cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados mortos.

 

Centenas de milhares de pessoas fugiram de suas casas buscando um lugar mais seguro e, entre elas, havia cerca de 120 mil crianças que se separaram de suas famílias.

Mugabo e seu irmão mais novo, Tuyishimire, eram apenas dois dos 40 mil que cruzaram a fronteira para buscar refúgio em países vizinhos. E Mugabo – com apenas sete anos de idade – se tornou o chefe de sua casa, num campo de refugiados no que hoje é a República Democrática do Congo.

Afinal, a última incumbência que sua mãe lhe dera antes de morrer era cuidar de Tuyishimire, até então uma criança pequena.

 

“Vivíamos pedindo esmola, tomate e peixe “, lembra ele.

Mugabo e Tuyishimire estavam com medo de voltar para casa — Foto: BBC

Mas os campos eram lugares perigosos: os milhões de refugiados que buscaram abrigo ali podem ter sobrevivido ao genocídio, mas agora se deparavam com cólera e diarreia.

Dezenas de milhares morreriam antes que pudessem voltar para casa.

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“Os campos de refugiados eram ruins, muito ruins. Havia doenças em todos os lugares”, diz René Mukuruwabu à BBC, sentado em um jardim em Kigali, a quilômetros de onde ele e sua família foram obrigados a morar quando foram forçados a fugir.

René, de certa forma, teve sorte: ninguém de sua família morreu quando chegaram à Tanzânia em 1994.

Mas então seu pai desapareceu e sua mãe, que montou uma clínica para ajudar os doentes, engrossou as estatísticas dos mortos no campo.

De repente, sua família se restringiu a ele, seu irmão Fabrice e sua meia-irmã.

Pouco tempo depois, René, na época com cinco anos, estaria sozinho no mundo.

René perdeu sua família em um campo de refugiados na Tanzânia em 1994 — Foto: BBC

Depois que o genocídio terminou em julho de 1994, agências humanitárias foram confrontadas com uma série de problemas – como cuidar dos feridos, como alimentar os famintos, como abrigar os sem-teto.

E como reunir crianças perdidas, separadas de suas famílias.

Mas – muito antes da internet ou dos smartphones, quando as pessoas fugiam apenas com a roupa do corpo, em meio a um país em crise – como é possível promover esse reencontro?

“A ideia partiu de Neville Harms, diretor do serviço de língua suaíli da BBC em 1994”, explica Ally Yusuf Mugenzi. “Ele decidiu montar um projeto para reunir famílias que estavam desaparecidas”.

E assim foi elaborado um plano para criar um programa curto de 15 minutos que seria transmitido pela BBC a Ruanda e aos países vizinhos. Começaria com um boletim de notícias seguido por pessoas buscando seus parentes desaparecidos.

A tarefa não foi fácil e contou com a ajuda da Cruz Vermelha, que gravou e enviou as gravações para o estúdio.

“Demos voz às pessoas desses campos”, explica Mugenzi, que se tornou um dos dois apresentadores do programa.

O programa ganhou o apelido de Gahuzamiryango, que significa “o unificador de famílias” e foi transmitido pela primeira vez há 25 anos. Deveria durar apenas três meses. No entanto, esse prazo acabou estendido.

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A última vez que René viu seus parentes, eles estavam voltando para Ruanda. Então, desapareceram.

“Você pode imaginar uma criança que se perde dos pais?”, pergunta. “Chorava sem parar, já tinha perdido as esperanças. Via muitas pessoas ao meu redor, mas nenhuma delas era da minha família”.

Quando foi encontrado por agentes humanitários, René havia perdido a capacidade de falar.

“Eles perguntaram meu nome, meu endereço. Mas não conseguia falar. Tinha medo. Também tinha perdido a confiança nas pessoas e minhas esperanças”.

René continuou sem falar por meses, enquanto passava por orfanatos cheios de crianças que, como ele, se perderam dos parentes.

Mas então – quando foi finalmente adotado – ouviu uma voz no rádio.

“Meu vizinho veio correndo para me dizer que tinha ouvido meu nome no rádio”, lembra ele. Ele correu para a casa do vizinho para ouvir por conta própria.

“Eles (apresentadores) estavam lendo nomes – o meu nome estava lá.”

“Não conseguia lembrar o meu nome, mas lembrava o nome do meu irmão mais novo”, revela Mugabo, enquanto mostra à BBC uma foto dos dois meninos que a Cruz Vermelha descobriu vivendo sozinhos na República Democrática do Congo.

Mas foi o suficiente: em Kigali, o tio Theogene ouviu a transmissão.

“Quando ouvi pelo rádio, pensei que era uma mensagem dos céus”, diz ele, sorrindo de satisfação mesmo após tanto tempo.

“Isso ocorre porque as pessoas que estavam aqui em Ruanda não tinham comunicação, não recebíamos mensagens de nenhum lugar”.

 

Mas ouvir os nomes foi apenas a primeira parte de uma longa jornada para levar os meninos de volta para casa. O país ainda estava mergulhado em confrontos e as estradas eram perigosas.

Além disso, os meninos estavam com medo de voltar.

“Vi a carta do meu tio que estava em Ruanda e que ele queria nos ver. Mas recusei”, diz Mugabo.

“Vi meu pai morrer, vi minha mãe morrer, então por que deveria voltar?”

E havia mais uma coisa: seu tio era um soldado da Frente Patriótica de Ruanda – o exército rebelde tutsi que assumiu o poder em Ruanda, encerrando o genocídio. E aqueles soldados, Mugabo aprendeu desde criança, eram “baratas que tinham caudas”.

Mas seu tio tinha mais uma carta na manga: ele enviou uma foto sua e de outro de seus irmãos. Foi o suficiente: depois de um ano na floresta, Mugabo e Tuyishimire voltaram para casa.

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René não sabe dizer por que não fez nada quando ouviu seus nomes no rádio. Medo, possivelmente: ele sabia que tinha uma vida feliz com sua família adotiva. Talvez isso o fizesse sentir mais seguro.

Ao mesmo tempo, contudo, também lhe deu esperança de que alguém estivesse procurando por ele.

“Nunca tirei isso da minha cabeça”, diz. “Queria ouvi-lo (tio) de novo no rádio, mas nunca aconteceu”.

Sendo assim, René decidiu não mudar seu sobrenome, mesmo quando sua mãe adotiva sugeriu que ele adotasse o da nova família.

Quando ele entrou no Facebook mais de 15 anos depois, se perguntou se alguém poderia reconhecê-lo. E não precisou esperar muito por uma resposta.

“Coloquei meu nome no sábado e no domingo, eles me encontraram.”

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“Em 1995, tentamos encontrá-lo”, diz Charles, tio de René, à BBC. “Não o encontramos, mas não o esquecemos. Estávamos pensando que ele estava morto”, acrescenta.

“E então, 18 anos depois, foi um milagre para nós ver que ele ainda estava vivo.”

Foi o primo de René, Olivier, que o encontrou no Facebook. Olivier contou à família que o menino esquecido pela história havia “ressuscitado”. Só que ele não era mais um menino.

“Você se parece com seu irmão mais novo”, disse Olivier a René na primeira vez em que se conheceram. “É você, sem dúvida.”

Foi a primeira vez desde que os dois se separaram, todos esses anos atrás, que René soube com certeza que seu irmão havia sobrevivido.

René e seu irmão mais novo Fabrice, que foi trazido de volta para casa por sua meia-irmã, se reuniram em 2012 Foto: BBC

As transmissões de rádio não eram a única maneira pela qual a Cruz Vermelha e outras agências de ajuda humanitária tentavam reunir as crianças com suas famílias. Fotos foram compartilhadas, listas foram feitas e as crianças foram levadas de vilarejo a vilarejo, a fim de encontrar suas famílias.

No final, Espèrance Hitimana, atualmente gerente de proteção de dados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Kigali, estima que conseguiram reunir 70 mil pessoas.

Mas o trabalho ainda continua.

“Ainda temos cerca de dois ou três casos por mês”, diz ela. “Em alguns casos, temos sucesso e encontramos as famílias. Em outros, não temos notícias. Não há nada que podemos fazer senão dizer a eles que fizemos o que podíamos”.

Quanto ao serviço de rádio da BBC, ele ainda exista – embora os apresentadores não leiam mais os nomes dos desaparecidos.

Mugenzi – que agora comanda o que se tornou o Serviço de Grandes Lagos da BBC – fala com orgulho quando fala sobre o que ele e sua equipe conseguiram alcançar nos últimos 25 anos.

“Trata-se de uma plataforma que vem divulgando notícias verdadeiras, justas e imparciais por todos esses anos”, diz.

Mas ele sabe que as pessoas ainda se lembram de como tudo começou – pessoas como René, que agora vive com seu tio em Kigali, perto de seu irmão mais novo, e como Mugabo e Tuyishimire, que vivem perto de seu tio Theogene.

Theogene resume a importância dessas transmissões.

“Sem a BBC”, diz ele, “eles teriam morrido”.

Theogene agradece à Cruz Vermelha e à BBC pela ajuda Foto: BBC

 

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