O que é violência política de gênero e por que devemos falar sem descanso sobre ela?

O mundo da política não está acostumado às mulheres. Sequer o mundo está acostumado com as mulheres nos espaços de poder e decisão. Com a nossa ascensão, que se dá a cada dia de forma mais arrojada nesses redutos antes ocupados predominantemente pelos mesmos homens, vêm junto os entraves – e eles não são tímidos. Para as que ousam adentrar o ambiente político institucional, esses entraves aparecem embalados por violências de todo tom. Não à toa, estudiosas da vida das mulheres participantes do sistema criaram uma expressão para dar nome ao problema: violência política de gênero.

O fenômeno tem tipologia própria, classificada em cinco categorias: física, sexual, psicológica, simbólica e patrimonial. A última pode se dar, por exemplo, na medida em que não se cumpre a legislação eleitoral e há recusa em direcionar às mulheres os recursos que seriam para suas candidaturas. A simbólica é comum aparecer nas redes sociais, interferindo no exercício do mandato através do constrangimento e do descrédito. A psicológica seria o gaslighting da política, ou tudo que faz a mulher desconfiar das próprias convicções, mas também se manifesta através do amedrontamento e é especialmente sentida quando uma mulher decide se candidatar. A sexual invade a intimidade e apela a estereótipos estigmatizantes vinculados ao corpo, aos afetos e à aparência. A física, talvez o tipo mais tangível, pode ir às últimas consequências. Como em 2016 com a deputada britânica Jo Cox, do Partido Trabalhista no Reino Unido, assassinada a tiros e facadas por um extremista de direita enquanto saía de uma biblioteca.

No Brasil, assim como em países por todo o globo, há vítimas emblemáticas da violência política de gênero. Para a professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli, coautora de “Feminismo e Política, uma introdução” e autora de “Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil”, ambos publicados pela editora BoiTempo, nossa maior representante desse fenômeno é Marielle Franco.

Vereadora no Rio de Janeiro pelo PSOL, Marielle certamente marcaria o tempo pela parlamentar que foi, mas foi sua morte – assassinada com quatro tiros na cabeça em março de 2018 – que a transformou em símbolo na luta contra a violência de gênero na política institucional. Mulher, negra, bissexual, de origem periférica, mãe e jovem, transcendeu a cidade e o país em que nasceu e foi morta, tomando o mundo. Não é raro que o rosto de Marielle estampe cartazes em manifestações feministas pela América Latina e Europa. Na ocasião de seu aniversário de 41 anos, 27 de julho, Angela Davis e sua companheira, Gina Dent, clamaram justiça por Marielle em um vídeo que viajou as redes. Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Flávia Biroli não tem dúvidas, a despeito das motivações de sua execução, respostas que ainda não temos, não se pode ignorar as representatividades que Marielle carrega e vociferou no decorrer de seu mandato. “O que ela deixou gravado, o que publicou, os discursos que ficaram registrados, tudo mostra que na Câmara Municipal do Rio de Janeiro atuava como mulher negra da periferia o tempo todo, um perfil que raramente chega aos espaços de poder. O assassinato de Marielle não apenas é violência política, carrega os marcadores de gênero que vitimizam seus pares diariamente pelo mundo”.

Jo Cox, deputada britânica do Partido Trabalhista, foi assassinada em 2016 (Foto: Dan Kitwood/Getty Images)

Como agenda de pesquisa acadêmica na ciência política e registro em documentos internacionais, a violência política de gênero é tema recente, explica Flávia. “Passamos a falar dela na primeira década do século 21. Não que antes as mulheres não sofressem com a violência política, mas há um marco e uma região que define o momento em que começam a relatar publicamente, e de forma massiva, as agressões”. Flávia está falando do sul global e da demanda de grupos de mulheres por uma maior participação na política institucional. Isso se deu, por exemplo, em 2010 na Bolívia, com a adoção da paridade de gênero no Congresso e a previsão de alternância entre homens e mulheres nas listas dos partidos.

Com essas medidas, aconteceu a eleição de algumas representantes e a violência política de gênero veio a galopes. “Quanto mais avançam, maior é a reação contra elas”, acrescenta. “Há um consenso de que é uma uma verdadeira retaliação, que visa impedir e ainda prevenir que participem politicamente. Porque além de afetar as candidatas e eleitas, funciona como uma espécie de recado para todas as mulheres: vejam como é arriscado e custoso para vocês se meterem aqui.”

“No que diz respeito a silenciar as mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de prática.” A frase é da historiadora britânica Mary Beard e está no livro “Mulheres e Poder: um manifesto”, do selo Crítica da Editora Planeta. Nele, a professora da Universidade de Cambridge traça as origens da misoginia – começando pelo primeiro registro de um homem mandando uma mulher calar a boca, em “Odisseia”, de Homero (século VIII a.C.) – e mostra que ela ganha força quando chegamos às instâncias de poder, “dos comitês empresariais às sessões nos Parlamentos”, escreve.

“O México é bom exemplo da diferença entre violência política e violência política de gênero”, aponta Flávia. A pesquisadora conta que há expressiva violência política no país, que o crime organizado promove a barbárie e essa se tornou inerente ao regime, entretanto, que a violência política ganhou novos contornos quando foram adotadas as cotas de gênero nos parlamentos. “Mulheres eleitas foram ameaçadas, sequestradas e violentadas, inclusive para que o seu suplente homem assumisse o cargo.” Aconteceu o mesmo na Bolívia e o país teve que mudar o sistema de modo que a suplência fosse obrigatoriamente sempre de alguém do mesmo gênero da pessoa eleita.

Em 2012, a Bolívia foi o primeiro país a abordar especificamente a violência política contra as mulheres em suas leis. Em 2013, o México tipificou a violência política contra as mulheres, incluindo-a em uma lei mais ampla de prevenção.

Em 2018, o Instituto Alziras produziu um estudo para conhecer o perfil das prefeitas brasileiras na legislatura de 2017-2020. Ouviram 45% das 649 eleitas e identificaram que acumulam experiência na política em sua trajetória, têm mais anos de estudo do que os prefeitos homens e que a falta de recursos para campanhas foi a maior dificuldade quando candidatas. “Se encaixa em violência patrimonial”, avalia Flávia.

E então, nos deparamos com a máxima que nos foi contada: e a resistência das mulheres em votar em mulheres, também é uma face da violência política de gênero? “Nenhuma pesquisa feita no Brasil sobre padrão de votação indica rejeição ao voto em mulheres, nem por parte de mulheres, nem por parte de homens. O que temos é um conjunto grande de evidências sobre o baixo suporte dos partidos às candidaturas femininas. Eles deixam as mulheres à deriva quando candidatas”, complementa a pesquisadora.

Nas eleições municipais de 2016, 89,37% das candidaturas que receberam zero votos eram de mulheres. 14.498 não votaram sequer em si próprias. O mesmo não vale para os homens. 1.704 terminaram sem nenhum voto – 0,6% do total de postulantes. O dado reforça a tese de que muitas mulheres são colocadas no páreo apenas para cumprir a cota obrigatória. O pleito daquele ano foi o segundo a nível municipal com a vigência da lei 2.034/2009, que estabelece que cada partido ou coligação deve preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.

Flávia propõe um exercício. “Pensemos: temos 15% de mulheres na Câmara dos Deputados no Brasil. Para chegarmos a uma paridade de gênero, significa que 35% das cadeiras ocupadas por homens neste momento passariam a ser ocupadas por mulheres. São espaços relevantes, raros, importantes porque permitem efetivar decisões, inclusive sobre alocação de recursos… Fica agora mais fácil entender o quanto a ocupação desses espaços envolve uma disputa muito grande? A violência é usada em nome da manutenção desses lugares”.

Deputados comemoram durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, em 2016 (Foto: Mario Tama/Getty Images)

Mas não basta ser homem para reproduzir a violência política de gênero. A política dos homens feita para os homens segue “a norma heteropatriarcal”, diz Flávia. “No Brasil, a figura que se beneficia dela é a do homem branco com mais de 40 anos, cisgênero, com uma certa concepção opressora da masculinidade”, descreve. “O que denota que os que fogem desse padrão podem ser vítimas da violência de gênero”, acrescenta. Jean Wyllys, deputado federal entre 2011 e 2019, é um homem que sofreu com a violência política de gênero durante sua jornada na Câmara. Foi perseguido no Congresso, difamado, agredido, teve sua integridade e família ameaçadas de morte e desistiu do mandato, se exilando em outro país, onde continua até hoje.

Todo participante da política que seja visto como desviante em relação à norma heteropatriarcal é alvo potencial da violência de gênero, fato. Acontece que com as mulheres, não há chance de escapar dela. Mesmo quando estão enquadradas e subservientes ao estabileshment. Mesmo quando aderem a valores contrários às mulheres e jogam ao lado dos agressores, replicando seus comportamentos. A deputada federal pelo PSL de São Paulo Joice Hasselmann não era do tipo que acreditava em violência política de gênero, até os ataques contra ela tomarem sua vida pública e privada. Joice foi subjugada, estigmatizada e exposta por sua atuação parlamentar, por seus tuítes, por seus posicionamentos na Câmara, pelas roupas que usa, por suas expressões faciais, por sua voz, pelo próprio corpo. Por ser mulher. Como Jean Wyllys, ela e a família sofreram ameaças de morte, seus filhos chegaram a ser coagidos por mensagens no celular.

Em 2014, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) ouviu de Jair Bolsonaro, então também deputado, que não merecia ser estuprada por ser feia (Foto: Divulgação Maria do Rosário)

“A violência destinada às que tem voz na política exclui e disciplina os corpos. Tenta reposicioná-las depois que o ‘desencaixe’ que causaram se deu”, diz Flávia, que finaliza citando outras políticas brasileiras marcadas pela violência de gênero como a deputada federal Maria do Rosário (PT/RS) – ouviu em 2014 do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), então deputado, que não merecia ser estuprada “porque é feia” – e Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, impeachmada em 2016, alvo de agressões durante o processo que a destituiu do cargo. Lembram do adesivo de carro no qual Dilma é ilustrada de pernas abertas para a mangueira de abastecimento do posto ser introduzida?

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