O que faz a maioria das vítimas de estupro não reconhecer ou falar sobre a agressão

Ela tinha 16 anos, ele tinha 40. Ela disse a si mesma que era um relacionamento romântico.

por Christine Ro no BBC

Imagem- Getty Images – De país para país e até de estado para estado, existem diferentes definições legais de agressão sexual

Mas seu corpo e mente faziam coisas estranhas quando estavam juntos. Às vezes, ela se sentia como se estivesse separada de seu corpo, que tremia sem parar depois de vê-lo. Era um tremor de corpo inteiro.

Ela nunca tinha experimentado essas sensações antes – mas também nunca tinha estado com um homem mais velho. Essa reação deveria ser normal para a situação, ela pensou. E não as levou em consideração.

Marissa Korbel demorou mais de uma década para entender aquilo não como parte do relacionamento, mas como agressão. “Eu realmente assumi toda a culpa por pelo menos nove ou dez anos”, diz ela. Após anos de terapia, ela agora é mãe e advogada de uma organização no Oregon, EUA, que defende sobreviventes de agressão sexual.

Korbel não está sozinha. Uma meta-análise de 28 estudos de mulheres e meninas com 14 anos ou mais que tiveram sexo não consensual – por meio de força, ameaça ou incapacidade – revelou que 60% dessas vítimas não reconheceram que tinham sido estupradas.

As histórias por trás dos números surpreendentemente altos mostram uma das principais razões pelas quais a agressão sexual geralmente não é imediatamente denunciada: é comum que as vítimas precisem de tempo para entender o que aconteceu com elas.

Rotular as experiências sexuais indesejáveis geralmente é um processo gradual; e um dos principais sinais do transtorno de estresse pós-traumático é evitar emoções e comportamentos que lembrem o trauma. De fato, 75% das pessoas que entram em contato com os centros da organização Rape Crisis England and Wales estão buscando apoio para um episódio ocorrido, pelo menos, um ano antes.

Não existe uma relação entre a rapidez com que alguém relata um ataque e a legitimidade dessa alegação. Além disso, vários fatores sociais e psicológicos impedem os sobreviventes de agressões de processar suas experiências imediatamente.

Roteiros falhos

Um aspecto fundamental é que muitas pessoas não têm certeza se o que aconteceu com elas foi “realmente” um estupro. Legalmente, as definições variam por país ou até por estado. No Reino Unido, por exemplo, uma mulher não pode legalmente ter cometido estupro (embora ela possa ser acusada de agressão sexual).

Nos EUA, a idade de consentimento é de 14 anos no Estado do Missouri (se a outra pessoa tiver 20 anos ou menos), mas em seu vizinho Illinois, a idade de consentimento é de 17 anos.

Essas diferenças legais refletem uma compreensão cultural igualmente confusa – e em evolução – do que é estupro. E até essas narrativas podem deixar alguém ainda mais inseguro sobre o que vivenciaram.

O estereótipo persistente do “estupro de verdade” envolve um homem desconhecido em um lugar público que penetra violentamente uma mulher que, por sua vez, resiste. Quando a agressão sexual não corresponde a essa narrativa, pode ser difícil até mesmo para a sobrevivente perceber que isso era, de fato, uma agressão sexual. Afinal, o cérebro categoriza as experiências de acordo com o que nos foi ensinado sobre o que elas significam.

Mas essa narrativa é um mito. Estupro não só inclui uma série de outras circunstâncias, mas geralmente é uma circunstância diferente da história de um estranho em um beco.

De fato, um estudo de 2016 com todos os estupros registrados em um departamento de polícia do Reino Unido durante um período de dois anos mostrou que nenhum dos 400 incidentes se encaixava na narrativa de “estupro típico”, de um homem com uma arma usando força física para penetrar uma mulher resistente, ao ar livre e à noite.

Por exemplo, é comum que as vítimas de estupro não resistam fisicamente porque estão inconscientes, aterrorizadas ou fisicamente paralisadas. Em um estudo de 2017 com mulheres que foram a uma clínica de emergência em Estocolmo, 70% relataram a chamada imobilidade tônica, uma paralisia temporária e involuntária decorrente de um medo intenso. Essas mulheres não consentiram passivamente. Seus corpos reagiram biologicamente à ameaça.

A dissociação, que Korbel experimentou pela primeira vez na adolescência, é outra resposta automática comum à ameaça. Como diz Zoe Peterson, psicóloga clínica que lidera a Iniciativa de Pesquisa de Agressão Sexual do Instituto Kinsey da Universidade de Indiana, “é comum que as pessoas escapem psicologicamente quando estão em uma experiência traumática da qual não têm meios físicos para escapar”.

Ainda hoje, Korbel às vezes revive a dissociação corporal que sentiu pela primeira vez com seu agressor. Revisitar o trauma é uma maneira de tentar entendê-lo.

“Estou buscando experiências sexuais que me dominem e que me façam simplesmente deixar meu corpo”, explica com naturalidade. “Mas tenho uma relação muito complicada com a dissociação porque sei que é um marcador do trauma. Sei que, quando aprendi a fazer isso, não foi uma coisa boa.”

O cérebro pode dissociar-se para ajudar uma sobrevivente a conseguir passar por aquele momento. Mas isso também as torna menos propensas a reagir. Ironicamente, deixa a experiência menos parecida com a narrativa do “estupro típico” que muitos de nós conhecemos. É provavelmente por isso que as mulheres que não revidam “têm menos chances de rotular a experiência como estupro”, diz Peterson.

Outra narrativa culturalmente aceita é que apenas as mulheres e meninas podem ser agredidas sexualmente. Por isso a maioria dos homens que foram abusados sexualmente quando crianças ou estuprados como adultos não considera suas experiências como abuso ou estupro.

Um estudo conduzido por Peterson e colegas pediu a 323 homens que preenchessem um questionário online sobre suas experiências sexuais. Apenas 24% das pessoas estupradas quando adultas o denominavam como tal.

Matthew Hayes (nome fictício), que mora na Califórnia, reconhece o quão difícil é usar essa palavra. Ele sabia que o relacionamento em que ele estava, quando ele tinha pouco mais de 20 anos, não era normal. Mas sua namorada costumava ser coercitiva e não fisicamente violenta, e por isso ele resistiu em pensar na experiência como estupro.

Hayes lembra de três incidentes em particular de quando sua ex-namorada agia de maneira ameaçadora. “A primeira foi quando ela se machucou até fazermos sexo. A segunda foi quando ela pegou uma faca e ameaçou se cortar ao longo da noite, a menos que fizéssemos sexo.”

“A terceira foi a única [ameaça] direcionada, na verdade, para mim, na qual ela, de alguma forma, conseguiu uma arma. Ela a trouxe e, como de costume, me disse que algo aconteceria a menos que eu fizesse sexo com ela.”

Somente um ano após o término do relacionamento, e depois de conversar com um amigo que ficou horrorizado com a experiência, ele percebeu que isso era mais do que manipulação – era estupro. Afinal, sua experiência não fazia parte da narrativa comum do estupro, especialmente por ele ser do gênero masculino.

Mas há muitas motivações pelas quais a experiência de alguém não se inscreve na definição de estupro. Peterson e sua colega Charlene Muehlenhard descobriram, em um estudo com 77 universitárias que sofreram penetração não consensual, várias razões pelas quais as mulheres não classificaram suas experiências como estupros. Estas incluíram:

  • O agressor não correspondia à imagem de um estuprador (“ele era meu amigo e todos o amavam”)
  • Elas temiam que seu comportamento não correspondesse ao de uma vítima “normal” (“foi minha culpa estar sob efeito de substâncias”)
  • Não houve violência física ou resistência (“ele não estava me batendo”)

Algumas narrativas estereotipadas de estupro podem se aplicar a situações de conflito, deslocamento e desastres naturais, quando os relatos de estupro ao ar livre por estranhos armados se tornam mais frequentes. O estupro é bem conhecido como uma arma de guerra. Quando a ordem social é abalada, a violência sexual geralmente aumenta.

Essa prevalência pode, por si só, levar a definição cultural de “estupro” a se estreitar ainda mais.

Ranit Mishori é consultora médica na organização Médicos pelos Direitos Humanos, que coordena um programa sobre violência sexual em zonas de conflito. Uma de suas regiões é a República Democrática do Congo (RDC), onde conflitos violentos persistem há décadas.

Lá, “vemos o que chamamos de ‘normalização do estupro'”, diz ela. “Em um estudo, quase um terço dos homens afirmou aos pesquisadores que as mulheres querem ser estupradas e podem até gostar disso.”

“Sobreviventes podem internalizar essas mensagens e simplesmente considerar tais agressões como parte da ‘vida normal’ ou algo com que toda mulher eventualmente tem que lidar, em vez de enxergar aquilo como um crime sério. Isso é comum em muitos países e culturas onde o direito sexual masculino é dominante”, acrescenta.

Mas seja qual for o contexto, Peterson adverte que “é realmente importante deixar claro que, independentemente de se rotular uma agressão sexual ou estupro como tal, isso não muda, necessariamente, o fato de o episódio ser ou não traumático”.

Em relação a Hayes, quando ele percebeu que tinha sido estuprado, ficou assustado e arrasado. Ele diz estar feliz, no entanto, por ter tido esse tempo antes de “a ficha cair”. “Ajudou muito o fato de ter havido um intervalo para que as feridas pudessem ser curadas”, diz.

O preço de reconhecer a agressão

Outro fator que confunde a compreensão de uma experiência como uma agressão: as sobreviventes às vezes continuam – ou até mesmo começam – as relações com seus agressores. As leis que protegem os estupradores da acusação se eles se casarem com suas vítimas ainda existem na Argélia, nas Filipinas, no Tajiquistão e em outros países.

Mesmo em lugares sem tais leis, os sobreviventes relatam terem namorado seus agressores em um esforço de neutralizar o trauma ou recuperar algum controle sobre um evento que as deixou impotentes.

Há uma lógica de proteção psicológica para isso. As respostas ao trauma variam com base na percepção do indivíduo. A agressão sexual é um golpe no entendimento sobre, por exemplo, certos homens (como um marido ou um amigo) serem confiáveis. Algumas vítimas vão rejeitar essa ameaça por conta de sua crença.

Da mesma forma que o cérebro pode neutralizar qualquer outro choque ou trauma com negação, pode ser mais reconfortante acreditar que ele não foi realmente estupro.

Como explica Katie Russell, porta-voz da organização Rape Crisis England & Wales: “as pessoas podem achar muito difícil nomear, digamos, seu parceiro, seu ex-parceiro, talvez o pai de seus filhos, como estuprador. É difícil fazer isso”.

Peterson enxerga isso como uma espécie de dissonância cognitiva entre “a ideia de que estupradores são sociopatas perturbados” e a realidade mais desconfortável de que assediadores estão ao nosso redor. “De muitas maneiras, com base na pesquisa, homens que estupram mulheres não são tão diferentes dos homens que não estupram mulheres”, diz ela.

Ela descobriu que as mulheres em seu estudo estavam relutantes em pensar nos ataques sofridos como estupros por uma série de razões, incluindo:

  • Eles não queriam chamar o homem de estuprador (“A princípio eu fiquei chateada, mas me importava com o sujeito e não quis chamar o episódio de estupro”)
  • Eles não queriam pensar em homens parecidos como estupradores em potencial (“Ele se parece com um monte de caras que conheci”)
  • “Estupro” é uma palavra intimidadora (“Eu digo às pessoas que minha primeira experiência não foi por minha escolha, foi forçada. Falar assim me deixa menos desconfortável”)

Sobreviventes, especialmente meninas e mulheres, muitas vezes se esforçam para pedir desculpas em nome de seus agressores. Eles frequentemente minimizam os ataques chamando-os de “falta de comunicação” ou “sexo ruim”. E eles redirecionam a culpa por causa dos muitos custos de chamar a ocasião de estupro – que pode variar desde fofoca e culpa pela perda de oportunidades econômicas, à rejeição da família e exclusão social.

Autoconsciência

Escrever este artigo fez-me perceber o quão típicas são as minhas próprias experiências. Dei de ombros quando estava bêbada e drogada na van de um namorado da adolescência e ele pressionou o pênis na minha boca.

Eu ri ao ser tateada por um amigo em uma festa e por um parente em casa. Eu sou como muitas mulheres e crianças que normalizaram a ideia de que nossos corpos não pertencem totalmente a nós mesmos e que violações de nossos corpos não são sentidas como violações.

Por isso, é sempre importante que os sobreviventes ouçam: não foi sua culpa. Dor e vergonha podem se tornar um coquetel tóxico de culpa direcionada à pessoa errada. Mas não foi sua culpa.

“Há o trauma do que acontece com você e, em seguida, há a forma como você se agride pela maneira como respondeu à situação”, afirma Korbel em voz baixa. “Há muita vergonha que as pessoas não entendem”.

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