O que faz o Brasil se comover quando estátuas são incendiadas?

As imagens da estátua de Mãe Stella de Oxóssi em chamas, em pleno Dia de Iansã e Santa Bárbara, chocaram o Brasil no último domingo (4). Ao longo do dia, intelectuais vinculados/as às maiores universidades e instituições de preservação do patrimônio cultural do país movimentaram as redes sociais e os programas de TV e rádio com posicionamentos enfáticos. Em comum, avaliaram que o ato vai além da dimensão estritamente religiosa e dos limites da cidade de Salvador. O atentado confrontou os vários esforços em prol da patrimonialização do antirracismo em nossa sociedade. A polícia já identificou os responsáveis e a prisão se deu em menos de 24 horas.

Se você tomou conhecimento do caso, deve estar se perguntando: onde eu estava que não vi essa repercussão toda? Simples. Você não poderia ter visto, porque ela não aconteceu. Pelo menos, não agora e não nesses termos. A intensa comoção descrita, na verdade, aproxima-se do ocorrido em outro momento. O parágrafo anterior, portanto, está carregado de ironias. Foi escrito a fim de chamar atenção para um problema que temos até mesmo dificuldade de nomear: a monumentalização do racismo no Brasil.

Monumento a Mãe Stella sofre incêndio em SalvadorImagem: Reprodução Redes Sociais

Argumento neste artigo, tal como feito em outros espaços, que o racismo tem sido tratado como um monumento da cultura brasileira bastante protegido, um fundamento da organização da nossa diversidade cultural.

Quando uma estátua representa uma nação?

Em julho de 2021, integrantes do movimento Revolução Periférica protestaram pelo direito à memória e à história para as gentes negra, indígena e pobre, queimando pneus em torno da estátua de Borba Gato em São Paulo. Contra a imposição de símbolos nacionais que servem de elogio a violências coloniais ainda atuais, o ativista Paulo Galo assim afirmou antes de se entregar à polícia:

O ato no Borba Gato foi para abrir um debate, não para machucar alguém ou causar pânico na sociedade. E o debate foi aberto. As pessoas agora podem decidir se querem uma estátua de treze metros de altura que homenageia um genocida estuprador de mulheres.”

A estátua do bandeirante não chegou a ser destruída. Mas a intervenção foi suficiente para gerar, entre figuras recorrentes no debate público, o temor de que outros episódios se alastrassem Brasil adentro. Afinal, um ano antes, as reações desencadeadas após o assassinato do afro-estadunidense George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin no estado de Minnesota alcançaram escala global. A defesa do direito à vida no presente passava por uma revisão da maneira de lidar com o passado.

Os questionamentos, que levaram à derrubada de estátuas até mesmo na Inglaterra e no México, extrapolaram o episódio em si e explicitaram a conexão entre as recentes mortes violentas de pessoas negras e uma injusta estrutura de organização social de longa data.

Imagina se isso virasse moda por aqui? O que sobraria? Havia a consciência dos riscos que a situação levantava entre quem tem se beneficiado do monopólio dos debates e da gestão da memória e do patrimônio.

Por que a destruição da estátua de Mãe Stella de Oxóssi não preocupa como a do Borba Gato?

Mãe Stella de Oxóssi foi a iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá entre 1976 e 2018, quando faleceu. A homenagem foi inaugurada em 2019. No mesmo ano, a escultura foi pichada e a placa de identificação, arrancada. Dessa vez, o fogo descaracterizou ainda mais a obra feita em resina de poliéster e fibra de vidro por Tatti Moreno.

A ialorixá Mãe Stella de Oxossi, aos 92, em 2017 Imagem: Antonello Veneri

O artista plástico tornou-se conhecido nacional e internacionalmente por peças que retratam os orixás, estando expostas em espaços públicos em cidades como Salvador, Brasília e São Paulo. A produção dele foi feita para compor a paisagem urbana com representações associadas às culturas negras. Estamos falando de algo que combinaria muito bem com uma sociedade de maioria negra, em que houvesse espaço para todos, todas e todes.

Em julho deste ano, infelizmente, Moreno morreu na capital baiana, aos 77 anos. Isso significa que qualquer eventual reparação à obra não será feita sob seus cuidados. Aliás, nem isso está assegurado, haja vista os destinos que tiveram as estátuas de Iemanjá e outras expressões das artes negras violadas em diferentes pontos do Brasil.

É nesse ponto que fica fácil dizer que tem lastro histórico tamanha falta de costume para tratar essas obras e monumentos como indiscutivelmente valorosos para cultura nacional. Ela caminha junto com a incapacidade coletiva de acreditar que pessoas negras são plenamente humanas, cidadãs e devem ter seus direitos respeitados.

Isso se sustenta porque, no Brasil, o racismo existe como um patrimônio cultural, sobretudo das elites locais, mas também compartilhado por outros estratos sociais. Não faltam evidências incontornáveis e articuladas para demonstrar esse diagnóstico. A pergunta que fica é: Estamos preparadas/os para lidar com essa realidade desagradável? Não. Ou, talvez, ainda não.

E se o Museu da Memória dos Afrodescendentes, finalmente, saísse do papel?

Quando esteve à frente da Fundação Cultural Palmares, entre 2013 e 2015, o ator, diretor e produtor cultural Hilton Cobra, o Cobrinha, mobilizou esforços para a edificação do Museu Nacional da Memória dos Afrodescendentes. Ele visitou instituições internacionais, dialogou com especialistas de diferentes áreas dentro e fora do Brasil. Até mesmo um terreno de 65 mil m², localizado às margens do Lago Paranoá, em Brasília, foi doado pelo governo do Distrito Federal à União com essa finalidade. O museu estava sendo planejado como parte do Parque Mandela.

Articulado com o Plano Setorial para a Cultura Afro-Brasileira, previsto no Plano Nacional de Cultura, o Museu da Memória dos Afrodescendentes era pensado como um importante equipamento para o estabelecimento de uma postura antirracista mais arrojada por parte do governo federal. Representava ainda a demonstração efetiva de um compromisso com a reversão dos procedimentos empregados justamente para promover os esquecimentos/apagamentos da história da população negra.

Em vez disso, o que se viu de 2016 para cá foi um retrocesso grotesco, que escapou a muitos pessimistas. Mais do que nada fazer para ajudar, muito se fez para agravar o que já não estava indo bem. As escolhas do novo governo do presidente Lula para confrontar a cultura do ódio, portanto, serão decisivas para a promoção ou não de um novo letramento patrimonial em que a destruição de uma estátua como a de Mãe Stella de Oxóssi seja percebido como algo tão absurdo a ponto de acabar com a alegria de um domingo de festa. Temos disposição, como sociedade, para isso? Veremos.

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