O que você considera excepcional e lindo, pode ser só branco

Tenho uma amiga negra, Roziane Ferreira, economista, que gosta de dizer o seguinte: “Quando você sabe a diferença entre ser branco e ser bonito, nada mais te engana”. Fato! Existe um fetiche em torno do corpo branco que engrandece algumas características medianas, tornando-as excepcionais. Eu fico observando alguns personagens que a sociedade elege como padrão de beleza, modelo de inteligência, intelectual, gente fina e elegante. Espanta-me!

No auge da operação Lava-Jato e do antipetismo no Brasil, o então especialista em tudo, tudo mesmo, Leandro Karnal, publicou uma foto com o ex juiz Sérgio Moro em um restaurante. Chamou-me a atenção uma das frases que acompanha a foto: “Amo ouvir gente inteligente”. Para além das preferências ideológicas e partidárias, pensei: “Onde ele viu a inteligência desse homem?” Sérgio Moro não sabe articular um pensamento original, sequer embasar seus argumentos na lei. Fiquei surpresa com o fato de um intelectual público, ter como referência de inteligência ninguém menos que Sérgio Moro.

Mas a coisa não para por aí, não. Silvio Santos, no seu programa de televisão, ao lado do atual presidente, Jair Bolsonaro, disse: “o senhor é um homem muito bonito”. De novo, perguntei-me: “Será que ele está falando dos olhos claros e da pele branca?” porque, se olhar o conjunto, onde está o “muito bonito”? 

Mas voltemos ao branco. Um amigo negro que mora aqui na França, da periferia de Recife, é uma das pessoas mais inteligentes que conheço. Ele contou que uma brasileira, branca, convidou-o para um jantar nos seguintes termos: “Pedro, tenho um amigo francês muito inteligente que eu quero que você conheça”. Ele foi. Chegando lá, o tal amigo inteligente era um jovem recém formado em filosofia, que vomitava tudo que aprendera na graduação: Foucault, Sartre, Nietzsche, Hegel, com pitadas de Chico Buarque e Caetano Veloso. Acontece que meu amigo percebeu logo que ele não conseguia fazer nenhuma crítica ao pensamento dos referidos autores e sequer organizá-los por corrente de pensamento. Quando Pedro começou a lhe dizer que algumas coisas já tinham sido superadas, o rapaz começou a ignorá-lo na roda da conversa e, virou-se, literalmente, para a plateia branca, de boca aberta, estupefata diante da sua “excepcional” sabedoria. Pedro, olhando a cena, ficou admirado com o fato de ser tão fácil ludibriar pessoas, apenas por ser branco.

Nossa sociedade é assim, aparece um homem branco vestido bem, com cheiro de perfume francês, rebocando Shakespeare e Voltaire nas frases e já se consolida como intelectual. E, se misturar frases em latim, o púlpito é garantido.

Eu estudo corpos, minha tese de doutorado foi sobre corpos racializados. Para entender o valor atribuído aos corpos brancos em detrimento dos negros, o livro “Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia medieval”, de Kantorowicz Ernestt, foi-me de grande ajuda. O autor diz que o corpo do rei possui duas dimensões, uma fisiológica, ligada à natureza e a outra política, mística. É a segunda que lhe confere legitimidade e superioridade em relação aos demais mortais. O segundo corpo supera o primeiro, o corpo natural. Com corpos brancos e, quanto mais alva a pele, é a mesma coisa. O segundo corpo, o político, construído pela cultura, parece apagar as falhas, ou torná-las menores. Quando se quer representar um protagonista, galã, intelectual, nerd, civilizado, gentil, evoluído, belo, elegante, sedutor, é sempre o corpo branco aquele usado. O contrário de tudo isso, sobra ao negro: selvagem, criminoso, vilão, primitivo etc. Os filmes de Hollywood estão aí para confirmar. 

O professor e pesquisador, Cícero Roberto Pereira, da área de psicologia social, diz que pessoas brancas investem mais tempo em formar impressão de pessoas brancas que não de negras. Isso tem consequências que vão desde entrevistas de trabalho a assuntos triviais. A brancura das é determinante no tempo de atenção e na demonstração de interesse. No artigo “infância, raça e paparicação”, Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz apontam que crianças brancas, já na primeira infância, recebem maior cuidado, afeto, atenção e elogios do que crianças negras da mesma idade. O elemento principal? O corpo branco e o fenótipo.  

Nos últimos anos, tenho recorrido muito ao trabalho de tradução de textos em outras línguas. Para a Feminist Review, da Inglaterra, pedi algumas pessoas que me indicassem um bom revisor de texto em inglês, já que o “grosso” eu mesma dava conta. Alguns me disseram; “a fulana é ótima, já morou fora, faz este tipo de trabalho”. Enviei o texto e, para meu espanto, a fulana devolveu com apenas duas palavras modificadas. Não confiante na revisão, enviei a outro revisor, indicado como muito bom. Ao lhe questionar uma mudança de sentido de uma frase no texto, ele se defendeu assim: “mas o google tradutor foi quem me deu este significado”. Respondi que se fosse para usar o google tradutor, eu mesma faria. Ele disse ter se ofendido e ainda me chamou de mal educada e raivosa. Foi então que um amigo negro, Teófilo Reis, vendo o meu desespero com relação ao prazo e a dificuldade de achar alguém competente, sentou-se e trabalhou no texto inteiro.

Da mesma forma, pedi indicação para a tradução em italiano. Apesar de ter feito mestrado na Itália e morado sete anos em Verona, não me atrevo a colocar-me no mercado como tradutora ou revisora. O texto foi, então, traduzido por alguém que dizem ser referência em São Paulo e voltou-me horrível, com verbos e palavras erradas, algumas que não se usam mais na língua italiana. Refiz tudo e pensei: “Como brancos podem indicar alguém desse nível dizendo serem excelentes profissionais? O que veem ou deixam de ver?” A grande maioria que se coloca no mercado de traduções e revisões vem das classes médias brancas que fez intercâmbio no exterior, mas só têm “nível viagem”. A naturalidade com que passam por bons profissionais, me surpreende, pois, negros têm muita dificuldade em oferecer um trabalho devido ao peso das representações sociais e, com isso, buscam, na maioria dos casos, excelência antes de se “venderem” como bons profissionais. Conheço muitos amigos negros, excelentes no que fazem, que ainda não se sentem preparados, enquanto muito brancos medíocres estão aí, ganhando rios de dinheiro. O único facilitador é o fenótipo, este tende a ofuscar a mediocridade e cegar a maioria das pessoas. Como diz a escritora italiana Marilena Delli Umuhoza, de pai italiano e mãe de Ruanda, no seu romance autobiográfico “Negretta. Baci razzisti,” quando era criança e os pais discutiam por opiniões divergentes, ela ficava sempre do lado dele, pois era ele o branco. 

Enfim, concordo com Lilian Thuram, jogador de futebol e autor de diversos livros na França, entre eles “O pensamento branco”, quanto ao fato de se naturalizar algumas características adquiridas por treino, estudo e esforço. Ele diz que Marie-José-Pérec, atleta negra da ilha de Guadalupe, que ganhou diversas corridas, é vista como alguém cuja natureza foi feita para isso, logo, seu corpo e propensão ao esporte é quem lhe confere o mérito. Com brancos podemos estender o pensamento. O corpo branco é visto como o lugar natural da cultura, do saber, da civilização, logo, para alguns, não é difícil se afirmar sem grandes esforços. Mas, o dia que a gente desnaturalizar tudo isso, quero ver o que sobra de talento mesmo.

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Fabiane Albuquerque (Arquivo Pessoal)

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia pela Unicamp, autora do livro Cartas a um homem negro que amei.


@fabianealbuquerqueescritora


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