“O racismo existe, mas gostamos de fingir que temos brandos costumes”

A jornalista Diana Andringa apresentou no domingo, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, o documentário “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”. O auditório encheu para ver a produção, complemento à exposição patente até Agosto, mas no final foram várias as vozes que se levantaram contra o desequilíbrio entre a parte portuguesa e africana. Diana Andringa justificou que a história da primeira fase já está explorada e quis por isso dar voz aos africanos desconhecidos que ajudaram a construir a liberdade e também passaram pelo cárcere mandado construir por Salazar na Ilha de Santiago, em Cabo Verde.

 

Por que foi Tarrafal o “campo da morte lenta”?

Porque era um campo onde, sobretudo na primeira fase, morreram muitos portugueses. Não eram fuzilados, mas eram tratados em tais condições que morriam de doença. E, portanto, morriam lentamente. Não escapavam. Apanhavam as doenças do clima, da fome, da ausência de quinino (medicamento) e morriam, alguns muito lentamente. Como terá visto no filme, um dos cabo-verdianos preso já na fase africana do campo, também lhe chama o campo da morte lenta. Alguns guineenses morreram pelo simples facto de estarem encerrados, privados de sol e de movimento, mal alimentados, ao fim de tortura e espancamentos. Houve sempre aqui uma morte insidiosa. Não era morte por fuzilamento. Não era a condenação à morte em que se assumia a directa responsabilidade de disparar. Era a condenação à morte pelo acaso fatídico das condições de vida.

 

A Diana Andriga passou pela prisão de Caxias. Essa experiência influenciou a maneira como realizou o documentário?

Influenciou-me para toda a vida. Como diz no filme um dos entrevistados, Luís Fonseca, cabo-verdiano, na prisão nós aprendemos a conhecer-nos melhor e até a conhecer melhor as razões por que aderimos à luta. Acho que é verdade. Depois de se ter estado preso por ideias não se olha para o mundo da mesma maneira. De alguma forma comprometemo-nos ainda mais com essa causa. Por outro lado eu estava presa em Caxias. Tinha a visita da minha mãe quase diariamente. Estas pessoas era atiradas para sítios longínquos de onde muitas vezes não conseguiam contactar as famílias. Alguns deles eram analfabetos e a família também portanto não se escreviam. Há um deles que diz que saíam do campo para trabalhar e ver um bocadinho mais longe porque lá não podiam ver mais do que 20 metros. As pessoas precisam de ver. Precisamos da visão. Não reparamos nisso a não ser quando somos privados dela. Uma das partes mais duras da prisão é a ausência de imagem.

 

Também sentiu o mesmo.

Acho que foi sobretudo na cadeia que comecei a ter muita vontade de fazer filmes. Sentia muito a privação de imagem. É perfeitamente possível para mim perceber isso melhor do que alguém que nunca esteve preso. É mais fácil para mim perceber o que é o passar um dia. O importante que é encontrar coisas para lutar contra essa passagem do tempo. Um dia significa muito. Para nós que andamos a correr não significa nada. Um dia na cadeia é outra coisa. E depois a forma como estas pessoas souberam lutar contra a cadeia. Eu não tive nada de tão duro como estes homens, mas também tive dias duros. Dias em que estava nevoeiro e não se via muito para além da janela. Estes homens passaram anos sem janelas por onde olhar.

 

Mário Soares disse [no sábado] que se há sítio onde a exposição e documentário deveriam passar é Vila Franca de Xira pelo papel que teve na luta anti-fascista.

 

É um dos sítios. Há sítios míticos do país que foram sempre sítios de resistência. Vila Franca é um centro de resistência, também ao nível intelectual do movimento neo-realista. Creio que há aqui um público especial, também mais motivado para este tipo de filmes.

 

O documentário revela mais a segunda parte do Tarrafal [quando passou a ser ocupado por presos africanos]. Ficou magoada com a reacção do público que reclamou uma abordagem mais forte da primeira fase [altura em que era ocupado por portugueses]?

 

Acho que é comum, sempre que se faz qualquer coisa, as pessoas lembrarem todas as que ficam por fazer. Um documentário tem um tempo finito e uma hora e meia é já demasiado. A parte portuguesa já está bem coberta. É uma fase que não se pode escamotear, mas não pode ser a mais importante. Além de que escolhi fazer isto com base nas vozes das pessoas. Infelizmente os antigos do Tarrafal do tempo português já morreram quase todos. Tenho lá o Edmundo Pedro. Na outra parte tenho 30 presos. É uma parte desconhecida e que me diz respeito porque sou do processo de algumas destas pessoas. Falar de privilégio em situação de prisão é quase uma ideia bizarra, mas nós éramos uns privilegiados. Tínhamos direito a um julgamento, que não era justo com certeza (já tinham decidido em plenário quais as penas) mas ainda assim tínhamos um simulacro de julgamento. Eles não tinham nada. Era o governador ou o secretário-geral da província que decidia por despacho quantos anos iam passar no campo de concentração. Se tenho a possibilidade de fazer um filme tenho o dever de contar a história delas. Nós temos um dever para com a memória.

 

Nasceu em Angola e já disse que se considera uma portuguesa de segunda.

 

Não me considero. Eu era portuguesa de segunda! Era uma classificação administrativa. Continuo a reivindicá-la com muito orgulho. Chamaram-me portuguesa de segunda quando eu nasci por isso continuo a considerar-me portuguesa de segunda. Convém lembrar aos portugueses que eles distinguiam entre os portugueses que nasciam aqui e os que nasciam lá. Sou portuguesa e angolana. A minha cultura é sobretudo portuguesa, mas a minha raiz física, a minha terra, aquilo que sinto como o calor do meu sol e a cor do chão da minha terra fica em Angola, não fica aqui. Tenho mentalmente uma dupla nacionalidade. Ou se calhar não tenho nenhuma e sou uma cidadã do mundo.

 

Vila Franca de Xira é um concelho com muita diversidade cultural e sobretudo africana. Também eles se sentirão aqui cidadãos de segunda?

 

Não conheço a realidade do concelho, mas acho que serão sempre considerados cidadãos de segunda se têm a pele mais escura. O racismo existe em Portugal. Nós gostamos de fingir que não, que temos brandos costumes. Somos profundamente hipócritas sobre essa questão, mas a verdade é que o racismo existe e essas pessoas, tendo exactamente as mesmas competências e capacidades, se vão procurar um emprego enfrentam dificuldades. O que já neste momento é difícil para um português branco é muito mais difícil para um português negro, sobretudo se viver num bairro degradado. Portanto evidentemente são muitas vezes cidadãos de segunda.

 

Além desta multiculturalidade o que lhe diz Vila Franca de Xira?

 

Não conheço muito bem Vila Franca de Xira, mas já visitei locais lindíssimos à beira Tejo. Vila Franca de Xira lembra-me os livros do Soeiro Pereira Gomes, lembra-me o Álvaro Guerra, lembra-me o neo-realismo. Lembra-me sobretudo as coisas culturais. São talvez aquelas que conheço melhor.

 

 

Fonte: O Mirante

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