Introdução
A expansão do Cristianismo Ortodoxo nas Américas ocorreu, principalmente como resultado da influência das levas de imigrantes que se transferiram para o Novo Mundo provenientes do Leste Europeu. Essa foi regra geral, exceto em dois casos: no Alaska e no Caribe. O caso do Caribe é o menos conhecido em termos de pesquisa histórica incluindo a Jamaica onde a Igreja Etíope se estabeleceu com notável vigor regional. Eu espero que este pequeno artigo inspire alguém de grande conhecimento a estudar o assunto apropriadamente; e se isso também puder conduzir a um entendimento mais profundo do Universo Cristão, tantas vezes mal entendido em sua expressão na Jamaica, então, que Deus seja louvado!
por Cristianismo Rastafari
Origens
Igreja Cristã Ortodoxa Africana Garveista
Marcus Garvey foi um lider negro jamaicano, um nacionalista, figura proeminente do Universal Negro Improvement Association (UNIA), uma influente organização do movimento Black Power surgido na década de 1920. Embora se declarasse Católico Apostólico Romano, Garvey encorajou seus seguidores a imaginar Jesus como um negro e a organizar sua própria Igreja. Para enfatizar que tal Igreja não seria nem Católica nem Protestante, foi adotada a denominação “Ortodoxa”, ainda que não correspondendo aos cânones da tradicional Igreja Cristã Ortodoxa do Oriente, herdeira de antigas tradições doutrinárias desde a primeira ruptura da comunidade cristã, nos primeiros anos da Idade Média.
Os Ortodoxos Garveistas entraram em negociações, através da Igreja Ortodoxa da África, com a Metropolitana da Rússia a fim de obter reconhecimento oficial como jurisdição da Ortodoxa tradicional. Infelizmente, a negociações fracassaram porque os líderes Ortodoxos exigiram uma completa submissão administrativa e dogmática e os garveistas não se dispuseram a tais concessões, posto que desejavam praticar a doutrina conforme suas próprias interpretações. Depois disso, um bispo Ortodoxo Africano Garveista foi consagrado pelos Católicos Americanos – instituição que rejeita a autoridade do Papa romano mas que, em outros aspetos, em tudo se assemelha à orientação proposta pelo Vaticano.
A Igreja Garveista tinha milhares de fiéis em três continentes e foi um símbolo do anticolonialismo no Quênia e em Uganda. Naqueles países, os Ortodoxos Africanos rapidamente romperam relações com a Igreja de Nova Iorque e passaram a integrar o Patriarcado Grego de Alexandria, inteiramente Ortodoxo. O mesmo processo se repetiu em Gana, onde o Frade Kwami Labe, graduado do Seminário de Santo Vladimir, em Nova Iorque, conduziu a formação de uma comunidade Ortodoxa fortemente influenciada pelas idéias garveistas. (Eu percebo que muitos religiosos africanos ortodoxos não-canônicos – não alinhados em ponto ou pontos com a doutrina oficial – muitas vezes parecem envergonhar-se de suas origens “heréticas” e por isso procuram se distanciar de qualquer associação os princípios do movimento jamaicano).
Judeus negros
Os escravos negros da Idade Moderna sempre sentiram uma certa identificação com a história do cativeiro judeu, fosse na Babilônia ou no Egito; alguns justificam esta identificação através de uma lógica extrema que considera os negros escravizados como verdadeiros judeus. Este pensamento, provavelmente, teve sua origem nos Estados Unidos, no período escravagista e resultou na conversão de muitos negros ao judaísmo. A idéia era reforçada pela existência de uma comunidade negra judaica na Etiópia, minoria na população daquele país, que se organizava em guetos juntamente com os muçulmanos. Esses judeus, muitos pertencentes a grupos francamente anti-semitas, se auto-proclamam “verdadeiros judeus” mas, na realidade, em muitos casos, são Cristãos com a doutrina centrada no Antigo Testamento, reunião de livros que, em suas edições euro-ocidentais, os judeus etíopes, consideram distorcidos pela “cultura branca” e cuja originalidade afro-oriental pretendem restaurar. Um dos desses livros de maior importância é o Livro da Glória dos Reis, o Kebra Negast, uma escritura apócrifa (não reconhecida pelo Vaticano), supostamente traduzido diretamente do aramaico (antiga língua dos judeus). Neste texto, aparecem profecias que indicariam a destruição da “Babilônia Branca” ou “Babilônia dos Brancos” e o retorno dos Israelitas para a África, para o verdadeiro Zion (o Monte Sião). O Kebra Negast foi adotado pelos Rastafaris como parte de seus textos litúrgicos.
O profeta Garvey
Nos livros de história, Marcus Garvey aparece como um líder político interessado em promover a igualdade socio-econõmica entre negros e brancos. Na tradição popular jamaicana, Garvey aparece sob uma outra ótica; é considerado como um profeta inspirado por Deus, o precursor anunciador de Haile Selassie. Entre profecias e milagres, atribui-se a Garvey a predição de que um “poderoso rei” surgiria na África trazendo justiça aos oprimidos. Quando o príncipe (Ras) Tafari da Etiópia foi coroado imperador com ampla cobertura da imprensa mundial, muitos jamaicanos entenderam que ali estava o cumprimento da profecia de Garvey e, assim, nasceu o Movimento Rstafari. Garvey ainda era vivo quando o rastafrianismo começou a declinar. O próprio Garvey conheceu dias difíceis, preso sob acusação de fraude comercial. O “profeta” não era admirador de Haile Selassie; ao contrário, lembrava sempre a escravidão que ainda era vigente na Etiópia e considerava os Rastafaris como fanáticos loucos. Não obstante, os rastafaris continuaram reverenciando Garvey como a uma reencarnação de João Baptista, que segundo a versão bíblica rasta, tivera suas dúvidas sobre a identidade do Cristo!
A Trindade segundo a teologia bobo ashanti (ou bobo-shanti), congregação dos rastafaris discípulos do Mestre Príncipe Emmanuel. Na ilustração, Emmanuel, Haile Selassie e Marcus Garvey, manifestação terrena da Trindade Divina.Emmanuel personifica Jesus, Selassie é o ícone de Jah enquanto Garvey, profeta como João Baptista, é a inspiração do Espírito Santo.
Período classíco
Entre os anos de 1930 e 1960, o rastafarianismo era um movimento religioso local com pouca influência fora da Jamaica. Muitos líderes Garveistas insistiram na reverência a Haile Selassie e continuaram considerando o rei etíope como o personagem messiânico da profecia de Marcus Garvey. O movimento se manteve sob a liderança dos “Elders”, instituídos por consenso comunitário e que pregavam, cada qual, sua livre interpretação de texto sagrados; e não somente na Jamaica, porque o movimento se difundiu mundialmente em uma “Igreja ou Religião Rastafari” embora sem uma unificação doutrinária. Os livros mais utilizados eram, de fato, o Kebra Negast e a Bíblia do Rei James, que os “Elders” não hesitavam em “emendar” ou “corrigir”.
Religião de revelação
Esta Exegética (interpretação) anárquica dos textos era considerada uma virtude pelos Rastas clássicos. Rastafari não era uma religião, nem uma organização sociopolítica ou ainda uma filosofia; antes, era uma atividade dirigida à busca da compreensão e aceitação-realização da “Vontade de Deus” (Jah). Os Rastas clássicos, em geral camponeses e artesãos de pouca erudição, apreenderam com facilidade o espírito talmúdico das Escrituras e promoveram encontros onde eram realizados debates teológicos e orações comunitárias, atividades em prol da busca da Verdade. Os rastafaris não se identificavam com os protestantes. Acreditavam que o movimento tinha surgido por desígnio divino, inspirado por Revelações. Também não se aproximavam do Catolicismo representado pelo Vaticano do “Papa infalível”, porque um só homem não pode conter a Verdade; antes, Jah se manifesta em todos porque é o Um que está em toda parte.
Misticismo
Desde o início, a experiência mística é uma característica forte do rastafarianismo que enfatiza o “Temor a Deus” ou respeito à majestade de Deus Onipresente e o Poder de Deus, o Onipotente. Através da união com Jah o temor volta a ser o que deve ser, “Poder” que advém do autoconhecimento somente possível por meio de persistente disciplina e repetição ritual das idéias. Por essa razão, os Rastas não fazem adeptos mas confiam que a inspiração de Jah alcança as pessoas que deve alcançar. A união mística foi expressada pelo uso de um neologismo gramatical, um pronome composto “I and I” – o qual pode significar Eu, Nós, Você (s) sempre sendo um mesmo ser unidos na onipresença de Jah).
Comunidade
Muitos Rastas viveram e vivem, ainda hoje, em zonas rurais, próximos a bosques e florestas, habitando aldeias governadas por “Elders”. Em muitos destes grupos, há segregação entre homens e mulheres em um sistema semelhante ao dos monastérios. Em outros casos, frequentemente, organizam-se em aldeias que reconstituem as vilas africanas. Os “Dreads” ou Rastafaris observam cuidados alimentares. A comida, denominada I-Tal, é uma dieta baseada nas orientações do Pentateuco (Bíblia) com adaptações sempre visando o aspecto espiritual da nutrição. Em geral, os homens usam barba, que aliada aos longos cabelos resultam em um aspecto que, no período clássico do rastafarianismo jamaicano, era causa de discriminação social, obrigando muitos Rastas a usar a “baldface”, cara barbeada a fim de obter colocação no mercado de trabalho e ocultar sua filiação ao movimento rastafari. Durante o período clássico, os famosos “dreadlocks” (as tranças e mechas) foram usados apenas por uma minoria, especialmente por aqueles que haviam se comprometido com o “Voto do Nazareno”. Mais recentemente, pesquisas históricas sugerem que os dreadlocks se popularizaram através de um reação monástica contra a liberalidade e corrupção de alguns “Elders”. Esta espécie de “clero rastafari”, praticante de celibato e muitos seguidores da ética puritana dos “guerreiros nyabinghi”, remanescentes da cultura pagã, herdaram os dreads como símbolo emprestado de mais de uma tradição cultural, inclusive do vodoo, religião folclórica da Jamaica colonial.
Hinduismo
Outra fonte de pensamento pagão no Rastafarianismo foi a religião praticada por milhares de trabalhadores hindus que chegaram à Jamaica depois da abolição da escravatura. O Hinduísmo Clássico é a maior força religiosa das Índias Orientais, especialmente em Trinidad, mas sua influência no rastafarianismo tem sido, frequentemente, desconsiderada. Os dreadlocks, o uso da Ganja, o eremita e o asceta são figuras bem conhecidas na Índia e muitos “homens santos” há muito adotaram o modo de viver “rasta”, habitando cabanas modestas praticamente ao ar livre e fumando marijuana em rituais religiosos comunitários, quando utilizam o cachimbo comunal. A doutrina hindu da reencarnação foi adotada por numerosos Dreads que acreditam, inclusive, que jamacainos de hoje são a reencarnação de Judeus do passado ou então dizem “Sinto em mim o chicote do Senhor de Escravos”, para significar, não que vieram, de fato em época de escravidão, mas para se referir um profundo sentimento de solidariedade para com os ancestrais com os quais se identificam pela crença de que o Todo é sempre o Mesmo Um.
Repatriação
Entre os poucos pontos de concordância teológica sobre o qual todos os “Elders” (líderes reliogiosos rastafari) concordam está a “divindade” ou a natureza divina de Haile Selassie (embora seja um tema polêmico). Concordam ainda que Selassie pretendeu a restauração do “Mundo Negro” sugerindo o retorno dos afro-descendentes ao continente africano. A partir desta idéia, desenvolveu-se a teoria da Repatriação. Muitos dos primeiros Elders e também entre os atuais permanece a expectativa do momento histórico do retorno à pátria-mãe, especificamente, as terras da antiga Abissínia, que hoje compreendem Etiópia e parte do Sudão. A Teoria da Repatriação introduziu no rastafarianismo uma dimensão política de objetivo definido: grande parte dos Rastafaris, em todo o mundo, e sobretudo na Jamaica, passaram a desejar um retorno imediato à Etiópia.Uma situação sem semelhante histórico, com exceção para o Sionismo, e que exigiu das autoridades jamaicanas severas medidas de controle. Revolucionários convencionais atuam com objetivos locais mas o slogan Rasta nunca foi ‘Poder para o Povo”, mas “Deixe o meu povo ir”. Com o passar do tempo a frustração rastafari em relação ao Retorno atingiu o limiar de um quadro social explosivo. As tensões aumentaram a partir de 1954, quando o governo empreendeu uma ação repressiva contra um “pequeno-Estado” chamado Pinnacle, governado pelo Elder Leonard Howell que adotava a postura de um tradicional chefe africano ocidental. Os seguidores de Howeels migraram para os arredores de Kingston e o movimento, deixando de ser uma iniciativa separatista rural, tornou-se uma associação presente nos guetos da capital. Entre o fim dos anos de 1950 e início dos anos de 1960, uns poucos Rastas, em desespero, violaram o ensinamento de Não-violência dos autênticos Elders e promoveram uma série de atentados que resultaram em muitas mortes em troca de tiros entre Rastafaris e policiais. Este episódio colocou o movimento nos jornais do mundo sob uma ótica extremamente negativa; esta imagem somente começou a ser restaurada com o advento da música reggae, poucos anos mais tarde. O período clássico de isolamento chegava ao fim.
Federação Mundial da Etiópia
Ethiopian World Federation – EWF
País africano mencionado na Bíblia e única nação daquele continente que resistiu com sucesso às investidas do colonialismo, a Etiópia sempre foi um ponto de referência para os movimentos de resgate da “consciência Negra” nas Américas. Entretanto, o contato entre Etiópia e Américas jamais foi um fluxo intenso de relações até a Segunda Guerra Mundial. Em 1937, o imperador Selassie, em exílio, fundou a Ehtiopian World Federation (EWF) para angariar recursos e apoio político dos grupos nacionalistas do Ocidente. Depois da Guerra , a EWF continou a existir sob várias formas, algumas sob controle local porém todas mais ou menos empenhadas em algum contato com a Abssínia.
Trindad & Tobago
Nos anos de 1940, um bispo garveista chamado Edwin Collins fundou o que ele dizia ser uma legítima Igreja Copta subordinada ao Patriarcado de Alexandria – representante dos Ortodoxos no Egito (Na hierarquia da Igreja Ortodoxa os líderes maiores são chamados Patriarcas). Todavia, o Garveismo Coptico aproximava-se bem mais da Igreja Ortodoxa Africana que era, canonicamente, uma das divisões mais polêmicas. Em 1952 a Diocese Copta Garveista de Trinidad e Tobago rompeu relações com o Patriarcado de Alexandria e se colocou, por contaprópria, sob a orientação de Adis Abeba (capital da Etiópia, sede da Ortodoxia etíope). O clero foi importado da África e um sistema canônico completo foi implantado nas Ilhas.
Trinidad é uma história de sucesso na expansão da Ortoxia Etíope: um clero nativo foi rapidamente ordenado e paróquias foram organizadas em todo país e na Guiana. Em 1959, a organização central Copta Garveista em Nova Iorque tentou obter um status canônico. O arcebispo foi à Etiópia onde teria sido ordenado e retornou acompanhado por jovens padres e diáconos etíopes que ingressaram em universidades americanas. Esse clero rompeu quase que imediatamente com os Garveistas e instituiu paróquias voltadas para as necessidades dos imigrantes etíopes. Por essa manobra, os Garveistas responsabilizaram o novo grupo pelo declínio da Igreja nos Estados Unidos. Um dos clérigos reformadores tornou-se representante internacional da Ortodoxa Americana: Laike M. Mandefro, Arcebispo Yesehaq, metropolita do Hemisfério Ocidental e Apóstolo do Caribe. Todo esse movimento se desenvolveu à parte do movimento rastafari, que ainda estava restrito à Jamaica. Um concílio (ou Assembléia de Cônegos) foi instaurado ali em 1938, sendo quase que imediatamente rejeitado pelos rastafaris, em particular por dois proeminentes Elders, Joseph Hibbert e Arquibald Dunkley. Ambos eram místicos notáveis, Iniciados que pertenciam à Loja Maçônica Copta da Costa Rica e foi através deles, e não de outra forma que o cristianismo ortodoxo penetrou na Jamaica.
O Sacerdote etíope da Igreja Ortodoxa exibe uma Bíblia muito antiga com ilustrações onde figuram Reis Etíopes – em Santa Maria de Zion, Axum (atual Eritréia).
Grounation Day
Com a expansão da Igreja Etíope em Trinidad, Haile Selassie foi convidado a visitar aquele país, em 1966. Nesta época, a Jamaica era palco de uma crise social nacional na qual os Rastas eram vistos como uma ameaça que devia ser dispersada. Um grupo de sociólogos persuadiu o governo a investir em uma ligação mais intensa com a realeza etíope. Com esse fim, aproveitando a presença de Selassie na região, foi negociada uma parada estratégica do imperador na Jamaica. Assim nasceu o Grounation Day, para os Rastas jamaicanos, o dia da chegada de Selassie a Kingston. Ao contrário da versão muito divulgada de que Selassie estranhava ou espantava-se ao descobrir a existência dos rastafaris (grande parte dos quais acreditando que o rei etíope era a encarnação da essência de Deus), era bastante evidente que o propósito de Selassie em sua visita a Jamaica era um encontro com as lideranças rastas. Recebido no aeroporto por milhares de rastas que vestiam branco e cantavam “Hosanas ao Filho de Davi”, o rei concedeu audiência para uma delegação de famoso Elders, como Mortimo Plano e Joseph Hibbert. Os detalhes desse encontro histórico não foram registrados e existem diversas versões na tradição oral jamaicana. Certamente, foi proposto aos religiosos que aderissem oficialmente ao Ortodoxismo; em contrapartida, havia a possibilidade de promover a imigração de grupos jamaicanos para a Etiópia que poderiam estabeler colônias em terras do sul do país. Outra versão corrente diz que Selassie levou aos Elders uma mensagem secreta mais sintonizada com a realidade dos afrodescendentes do Terceiro Mundo. Diria esta mensagem, referindo-se ao ideal de repatriação: “Primeiro, construam a Jamaica”.
Missões Jamaicanas
Em 1970, a convite do Elder Hibbert, Abba Laike Mandefro, pessoalmente, deu início à evangelização dos rastafaris. Ao longo do ano ele batizou cerca de mil e duzentos rastas, lançando as bases para a fundação da Igreja e seu desenvolvimento posterior. Mandefro encontrou forte oposição de alguns Elders que ensinavam que Haile Selassie era Jah-Deus em essência e que batizavam também, mas “em nome Ras Tafari”. Na baía de Montego, somente um Dread aceitou o batismo ortodoxo. Laike Mandefro deu a este rasta o nome de “Ahadu” – “One Man”. Uma grande crise atingiu a nova Igreja em 1971, quando era comemorado o nonagésimo aniversário de independência da Jamaica. O clero Anglicano, Católico-romano e Ortodoxo, das Igrejas Grega e Etíope, participavam das comemorações. Os Rastas escandalizaram-se com as orações conjuntas, reunindo Ortodoxos com representantes das “falsas religiões”.
Milhares de membros batizados na Ortodoxa se afastaram e a paróquia jamaicana parecia inteiramente perdida. Muitos não hesitaram em organizar Igrejas Rastafari que começaram a retomar o tradicional sistema dos Elders, incorporando em diferentes graus a liturgia da Igreja Ortodoxa e sua influência teológica. Ao lado de grupos heréticos e sincréticos, um movimento Rastafari Ortodoxo legítimo continuou a florescer como espinha dorsal da Igreja Jamaicana. A Federação Mundial da Etiópia (EWF), sob a liderança de Dunkley e Hibbert, tinha grande prestígio. Na Jamaica, a Federação mantinha as orientações políticas e sociais e distinguia-se do rastafarianismo tradicional adotando as regras ortodoxas mas venerando o Imperador Selassie como um ícone sagrado representartivo de Jah-Deus, não mais confundido as duas pessoas, o humano e o divino. Essas orientações diluíram significativamente os anseios populares por um retorno à África.
* A teologia ortodoxa distingue diferentes graus de divindade. Somente o “Incriado” é Deus-em-Essência; os homens podem ser “divinos por participação”; os ícones são canais objetivos, terrenos através dos quais o poder divino se manifesta no mundo. A questão que divide os “irmãos” da fé ortodoxa reside no grau de divindade atribuído à personalida de Haile Selassie. Os Ortodoxos canônicos dizem que ele é divino por participação e iconicidade e somente por isso merece veneração; a congregação rastafari “Doze Tribos” sustenta que ele é divino em essência confirmada pelos méritos de sua liderança.
Reggae
Ainda durante os anos de 1970, a reggae music alcançava um apogeu em sua popularidade; a lírica e os temas religiosos eram uma regra da poética. Muitas bandas famosas foram Ortodoxas, como Os Abyssinians, um grupo ligado ao clero monástico. A família de Bob Marley, superstar do reaggae, era majoritariamente ortodoxa, embora o próprio Marley tenha sido, durante muito tempo, adepto da congregação Doze Tribos de Israel. Em seus últimos anos de vida, quando estava condenado pelo câncer, Marley passou por uma transformação espiritual (e sua música também) que culminou com seu batismo na Igreja Ortodoxa. Seu funeral, ortodoxo, foi acompanhado por dezenas de milhares de fãs.
O corte dos locks
Em 1975, Haile Selassie morreu na prisão dos generais que depuseram a dinastia e tomaram o poder. A Etiópia transformara-se em uma República comunista. A Igreja Etíope, sob a lei do novo regime, enfrentou uma dura perseguição e somente sobreviveu porque aceitou negociar com seus perseguidores. O marxismo, em Adis Abeba, não podia tolerar a veneração a um imperador ou a qualquer personalidade de liderança, tanto mais uma figura que inspirava revoluções mesmo em terras distantes da Etiópia. Eu tenho a impressão que a situação política etíope estimulou uma migração na classe média do país, em boa parte inspirada pela ideologia rastafari, que lá chegara através dos mídia (meios de comunicação). Na Inglaterra, o rastafarianismo se espalhou em suas variadas orientações, o que não era bem visto pelas autoridades, que suspeitavam das influências “heréticas” da religião e relacionavam os rastafaris como um nicho da população ligado a atividades criminosas. Porém, em um regime democrático, os Rastas encontraram a proteção da Comunidade Etíope da Inglaterra, especialmente em Handsworth, distrito de Birmingham. Ainda assim, em 1976, todos os Rastas ortodoxos foram pressionados a cortar suas tranças e mechas e fazer uma declaração formal de repúdio à heresia de atribuir divindade ao imperador Selassie. Os que cumpriram o decreto, tão subitamente promulgado, fizeram disso uma atitude meramente exterior, mantendo na esfera privada suas crenças e usos de menor visibilidade.
Sincretismo
Apesar dos conflitos doutrinários, a Igreja Ortodoxa Etíope difundiu-se em território caribenho graças aos Movimento Rastafari. Ainda que atualmente (1995) somente uma minoria de rastafaris sejam Cristãos Ortodoxos conversos, inicialmente, nos primórdios do rastafarianismo, todos foram mais ou menos, direta ou indiretamente influenciados pelos dogmas e discurso Ortodoxos.The “makwamya”, o incenso durante as orações na liturgia ortodoxa, foi adotado pelos rastas, assim como os artistas plásticos rastas são influenciados pela iconografia. O sincretismo é particularmente evidente na organização das Congregações que vem se impondo como norma acima da liderança carismática do sistema dos Elders.
Doze tribos de Israel
As Doze Tribos Rastafari em nada se relacionam com as várias Igrejas Judaicas Negras que usam o mesmo nome. Entre os Rastafari, as Doze Tribos de Israel é provavelmente a maior e mais famosa entre as Congregações. Criada em 1968 por Vernon Carrington, o Profeta Gad ,a doutrina central da Tribos era a crença inabalável em Haile Selassie como sendo Jesu, o Cristo, que havia retornado à Terra com a majestade de um Rei.Para eles, a “Segunda Vinda”, o Retorno do Messias, havia acontecido. Sua teologia exotericamente coerente, discurso firme e eficiente sistema de organização converteram muitos jamaicanos.
Bobo Asahnti e príncipe Emmanuel
“Príncipe” Edward Emmanuel, foi o fundador de outra destacada congregação. Ele era um Elder famoso no período clássico, organizador do primeiro “Nyabinghi” ou O Grande Encontro Rastafari, em 1958. Príncipe Emmanuel foi uma figura polêmica que postulava para si mesmo o status de ser uma das pessoas da Santísima Trindade ressurecta no século XX. Identificando a si mesmo como Jesus, Emmanuel reconhecia as duas outras “Personas Divinas” em Heile Selassie e Marcus Garvey (ver leganda na ilustração acima). Ele esperava que o Congresso nayabhingi reconhecesse tal essa condição, de Pessoa da Santíssima Trindade. Mas a idéia não encontrou apoio da maioria. Mesmo sem reconhecimento unânime da comunidade rastafari, Emmanuel começou a organizar seus numerosos seguidores em uma Igreja instituída com fundamentos dogmáticos, hierarquia e um tipo de monasticismo (vida monástica, celibatária). Os sacerdotes da Igreja de Emannuel, muitos dos quais estiveram na Etiópia, vestem indumentárias semelhantes as da Igreja Ortodoxa da África e do Egito.
NOTA DO TRADUTOR: Atualmente, os seguidores do Príncipe Emmanuel continuam professando as mesmas crenças; um dos braços da Igreja original, os Bobo-Shanti Rastafari, integram o Etiópia Africa Black International Congress – Church of Divine Salvation (Congresso Internacional Negro Etíope-Africano – Igreja da Salvação Divina). Esta Igreja tem uma página na internet – BOBO-SHANTI RASTAFARI no servidor Angel Fire. O site contém textos doutrinários: o Credo Nacional, A Trindade Sagrada, O Sábado, sobre a orientação do Êxodo regulando o repouso semanal, um artigo sobre a conduta feminina com o título “A beleza é vã, Favor é falso, Mas a mulher que teme Rastafari, Ela será elogiada” e uma agenda com OS dias de Celebração. Em “Links”, estão relacionados nove sites, em inglês e espanhol, sobre a congregação Bobo Ashanti (ou Bobo-Shanti); entre estes, destacamos aqui a sessão de arte do HOUSE OF BOBO – apresentando o trabalho em desenho e cor do artista Ras Mohambeh.
Igreja copta de Sião (ou de Zion)
Esta era uma denominação Garveista Ortodoxa moribunda quando foi revitalizada por hippies brancos convertidos no anos de 1960. Apesar da liderança parcialmente estrangeira, a Zion Coptic cresceu explosivamente entre os negros jamaicanos, desiludidos com o discurso das Igrejas canônicas. Os Coptas, como eram chamados, declaravam-se como jurisdição ortodoxa legítima. Publicaram tratados teológicos e se engajavam em especulações em torno de temas da Gnose. Apesar do discurso complexo, circular, o mérito da Igreja de Zion foi adotar uma estratégia de aceitação e apropriação do que havia de melhor no pensamento clássico do Rastafarianismo na vida, no cotidiano da Igreja. Mantiveram os dreadlocks e adotaram os tambores nyabinghi, uma concessão cultural que naturalmente resultou em muitos conversos. A grande aceitação se refletia nas finanças da Igreja, que passou a contar com abundantes recursos mas, por isso mesmo, começou a ser alvo de críticas que apontavam os coptas como grandes proprietários de terras na Jamaica. Além disso, outros dois aspectos deste Cristianismo Ortodoxo sincrético, paradoxal em essência, foram causa de controvérsia: a criação informal de um território específico, um Estado-Igreja e as teorias gnósticas-rastafari que justificavam o uso da marijuana (maconha) como elemento de ritual religioso. Estas duas questões valeram a prisão do líder dos Coptas de Zion.
Conclusão
Eu acredito que os Rastafari tem sido bastante subestimados pelo mundo afora, incluindo muitos dos fiéis da comunidade ortodoxa. Os rastas clássicos eram pensadores teológicos e filosóficos sofisticados, não apenas meros líderes de algum primitivo “culto-cargo”. Esta teologia refinada foi concebida por eles mesmos e resgatava temas Cristão que foram objeto de debate nos primórdios do cristianismo; além disso, deixaram um rico legado artístico e cultural. Infelizmente, a publicidade em torno do rastafarianismo enfatiza, quase sempre, somente aspectos como a “heresia de Selassie” e o uso da maconha como indicativo de comportamento marginal ou antisocial. Muitos esquecem que a existência do Movimento Rastafari é um milagre: um povo esquecido, uma cultura perdida resgatando a si mesma e em si mesma os valores de uma antiga ortodoxia a fim de sobreviver, espiritualmente, em meio à hostilidade do ambiente consumista exterminador da pós-modernidade.
Nota do autor:
O autor fecha o texto com os versos de uma canção de Bob Marley. Aqui, permitiu-se a licença poética de traduzir estes versos. Abaixo, a letra original e a tradução:
Versos de Bob Marley
Old pirates, yes, they rob I,
Sold I to the merchant ships,
Minutes after they took I
From the bottomless pit.
But my hand was made strong
By the hand of the Almighty.
We followed in this generation, triumphantly.
Won’t you help to sing these songs of freedom?
Cause all I ever have: redemption songs,
These songs of freedom.
Tradução
Os velhos piratas me sequestraram
E me venderam aos marinheiros mercantes
Logo eu estava no fundo do bote
Mas minha mão é forte
Pela mão do Todo-Poderoso
Nós seguimos nesta geração
Você gostaria de cantar esta canção de liberdade?
Porque é tudo o que eu tenho
Canções de redenção, essas canções de Liberdade
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Por Norman Hugh Redington
Editor of The St. Pachomius Orthodox Library, 1995
tradução, revisão e adaptação: Ligia Cabús – 2004
texto original: BIGUP-RADIO.COM
imagens: Google – www.frankossen.com – www.houseofbobo.com
masterdesigner: jack – outubro, 2004.
Pesquisa de textos e seleção de imagens:
Carlos Eugênio Marcondes de Moura