O samba ainda sofre preconceito, diz pesquisador

Gênero musical não é apenas um reflexo da história social do Brasil, mas um construtor dessa história e um dos seus protagonistas, afirma o professor Maurício Barros de Castro, em entrevista à DW.Para o professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Maurício Barros de Castro, há um discurso recorrente, entre especialistas, de que o samba atingiu maior sofisticação com compositores brancos, letrados e de classe média.

no Terra

“Ou seja, é uma forma de ver o samba como algo primitivo, um ritmo menor, e de tentar afastá-lo das suas referências identitárias: a cultura afro-brasileira, a relação com a afrorreligiosidade”, diz o pesquisador, em entrevista à DW Brasil.

Castro lança neste mês o livro Nos quintais do samba da Grande Madureira: história, memória e imagens de ontem e hoje (Editora Olhares, 2016) e é também autor de Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica (Azougue Editorial, 2 ed., 2013).

imagem samba
imagem reprodução

DW: O samba surgiu da mistura de ritmos africanos, trazidos pelos escravos da África. No início, por estar ligado à cultura negra, o samba era perseguido e reprimido. Atualmente, cem anos depois do registro do samba Pelo telefone, ainda há resquícios desse preconceito?

Maurício Barros de Castro: Sim, a discriminação racial permanece na sociedade brasileira, e não há como o samba, referência de uma cultura de matriz africana, escapar desse preconceito. Isso se nota em discursos recorrentes de certos especialistas. É comum dizer, por exemplo, que o samba passou a ser mais aceito após alcançar uma sofisticação, a partir de compositores brancos, letrados e de classe média, como Noel Rosa e Ary Barroso. Outros até falam que a Bossa Nova seria um samba modernizado. Ou seja, é uma forma de ver o samba como algo primitivo, um ritmo menor, e de tentar afastá-lo das suas referências identitárias: a cultura afro-brasileira, a relação com a afrorreligiosidade. Alguns especialistas vão por esse caminho de desqualificar essas matrizes africanas e valorizar a inserção de artistas brancos como uma forma de modernidade. Mas sambistas como Candeia, Martinho da Vila, Nei Lopes, Wilson Moreira e Luiz Carlos da Vila, entre outros, são vozes poderosas que contestam esse tipo de pensamento e afirmam as matrizes africanas do samba, suas influências afrorreligiosas e sua negritude.

DW: E na academia, o samba recebe a atenção merecida?

Tem havido uma abertura cada vez maior para as pesquisas relacionadas ao ritmo, mas sempre há muito o que fazer. A academia ainda precisa se aproximar dos saberes dos sambistas. Seria importante promover esse intercâmbio, com aulas conjuntas entre intelectuais e sambistas.

Mas não creio que o samba enfrente um preconceito na academia atualmente. Há muitas pesquisas sobre o assunto, não é um tema marginalizado. Um exemplo é o livro que lançamos em novembro, Nos quintais do samba da Grande Madureira, produzido por professores e alunos de pós-graduação da Uerj, com apoio da Faperj.

DW: Como foi a transformação do samba, que era visto como “vadiagem”, de forma criminalizada, até ser considerado o estilo musical mais brasileiro de todos? Como o samba virou parte da identidade nacional?

O Hermano Vianna [pesquisador musical e antropólogo] já se referiu a essa questão como um “mistério do samba”. Essa transformação reflete os processos de apropriação das culturas populares durante a formação dos estados nacionais, não apenas no Brasil. Basta pensar na importância do blues e do jazz para a formação da identidade nacional dos Estados Unidos. Aqui, o samba passou a ser pensado como fruto de uma cultura miscigenada e genuinamente brasileira. A demanda da incipiente indústria cultural, principalmente do rádio, também teve uma importância definitiva na consolidação do samba como identidade nacional. O estilo musical, que inicialmente não era cantado pelos sambistas, mas pelos chamados cantores e cantoras do rádio, se difundiu pelo país, estimulado pela política nacionalista de Getúlio Vargas, nos anos 1930. Além do rádio, houve o apoio fundamental dos jornais populares. O primeiro concurso de desfile de escolas de samba foi patrocinado, em 1932, pelo jornal Mundo Sportivo, do jornalista Mário Filho, no Rio de Janeiro.

DW: O samba, em diferentes momentos da história do país, serviu para exaltar ou criticar governos e regimes. Como o senhor descreveria a relação entre o samba e a política no Brasil?

Como dizia o poeta, isso acontece “desde que o samba é samba”. Há até uma história de que o senador Pinheiro Machado teria assinado o seu nome no pandeiro do sambista João da Baiana, para que o instrumento não fosse apreendido pela polícia. Então essa relação sempre existiu.

DW: Qual foi a relação do samba com o Estado Novo, nessa oposição entre o culto ao trabalho e à malandragem?

O enaltecimento do trabalho entre as classes populares era uma das metas do governo de Getúlio Vargas. O trabalho não fazia parte do cotidiano da elite branca proprietária de terras e escravos, era algo relegado aos negros escravizados, pequenos comerciantes e profissionais liberais. Por isso, a malandragem era uma forma de subverter a ordem do trabalho, de ostentar a vadiagem, apesar de ela ser criminalizada. Em 1928, por exemplo, o samba A malandragem, de Bide, é gravado por Francisco Alves, o “Rei da Voz”, e faz enorme sucesso.

Há também o caso de Wilson Batista. Era um sambista negro, como praticamente todos de sua geração. Se envolveu em uma polêmica com Noel Rosa, que o criticou pela composição Lenço no pescoço, de 1933. A letra dizia: “Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Tenho orgulho de ser tão vadio”. Era uma ode à malandragem. Anos depois, em 1941, Wilson Batista lançou outro samba, O Bonde de São Januário. A letra teve que ser modificada devido à censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Vargas. Os versos censurados diziam: “O bonde de São Januário / leva mais um sócio otário / só eu não vou trabalhar”. O sambista precisou negociar e acabou mudando o sentido dos versos originais. A letra final ficou: “Quem trabalha é que tem razão/Eu digo e não tenho medo de errar/O bonde de São Januário/Leva mais um operário/Sou eu que vou trabalhar”.

DW: Na época da ditadura, escolas de samba fizeram enredos ufanistas e nacionalistas, mas o samba também foi uma importante forma de resistência, combatido pela censura. Qual o papel do samba nesse período?

O samba estava muito próximo dos movimentos estudantis e de esquerda. Havia o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE), o Zicartola [restaurante do sambista Cartola e sua esposa, Dona Zica, que reunia músicos na década de 1960] e o Teatro Opinião [sala de espetáculos ligado ao grupo de teatro Opinião]. Eram espaços que reuniam, no Rio de Janeiro, vozes discordantes do regime militar e que tiveram o samba como interlocutor.

Nessa época há todo um olhar dos intelectuais de esquerda para o samba e para as culturas populares. Era uma tentativa de engajar os sambistas como militantes políticos, tentar trazê-los para esse universo da elite, com uma aproximação dos estudantes universitários. Tratava-se de uma ideologia que buscava conscientizar o “povo”, considerado alienado politicamente, mas portador da “autêntica” cultura nacional. O samba Opinião, do Zé Keti, virou um hino de resistência em 1964: “Podem me prender/Podem me bater/Podem, até deixar-me sem comer/Que eu não mudo de opinião. Daqui do morro/Eu não saio, não”.

DW: O samba surgiu dos batuques e rituais das religiões afro-brasileiras. Como se nota essa relação atualmente?

O samba está intimamente ligado às manifestações religiosas da diáspora africana. No Rio de Janeiro, há influências da macumba carioca, o omolokô, a umbanda e o candomblé. Inicialmente, o samba era cantado após os cultos religiosos. Eram utilizados os mesmos instrumentos de percussão, mas o conteúdo dos cânticos se tornava profano, voltado para narrativas do cotidiano. Os temas das letras eram de louvor à malandragem, lamentos por desencantos amorosos, entre outros. Ogum, sincretizado em terras cariocas com São Jorge, é o “General da Banda” de terreiros de umbanda e rodas de samba. Além disso, a maioria das escolas de samba tem um orixá de devoção. E, como lembra Luiz Antônio Simas [pesquisador e escritor sobre samba], muitas delas reproduzem no naipe de caixas de suas baterias o toque de louvor a determinados orixás.

DW: Como o samba reflete a história social do país? Como aborda questões como racismo, desigualdade e participação feminina?

Não considero o samba um reflexo da história social do Brasil, mas sim um construtor dessa história e um dos seus protagonistas. Ele aborda questões como racismo e desigualdade de forma contraditória, da mesma maneira que grande parte da população do país. É importante entender que existem momentos históricos diferentes de luta contra o racismo e dos movimentos negros. Quando Geraldo Pereira gravou Escurinho, nos anos 1950, que falava de “um escuro direitinho”, o contexto não era o mesmo de Candeia, nos anos 1970, quando compôs Dia de Graça: “Negro, acorda, é hora de acordar / não negue a raça / toda manhã é dia de graça”. Temas como o orgulho negro ainda não estavam em pauta no tempo de Geraldo Pereira. Mas já estavam presentes quando Candeia se tornou umas das mais importantes vozes do samba a lutar pela afirmação da cultura negra. Ele fundou inclusive uma escola de samba dissidente das grandes agremiações, chamada Quilombo.

Quanto à participação feminina, as mulheres sambistas ainda enfrentam atitudes machistas no ambiente do samba, assim como na sociedade. Há diversos sambas que colocam as mulheres numa condição subalterna, alguns até enaltecem a violência de gênero: músicas que são famosas e cantadas até hoje. O que melhorou é que há um número cada vez maior de mulheres gravando, compondo e cantando sambas.

leia também:

10 canções obrigatórias para entender o samba

+ sobre o tema

Ronaldinho Gaúcho diz que viveu seus melhores anos no Barcelona

Em carta à torcida, Craque se mostrou emocionado ao...

Ilú Obá De Min convida para 6ª edição do Heranças Africanas

    Olá amigos e amigas do Ilú Obá De Min,...

Willow Smith tenta emplacar mais um hit com o single 21st Century Girl

Willow Smith tenta emplacar mais um hit. Depois do...

para lembrar

O documentário ‘Anderson Silva: Como Água’ será lançado no Brasil em 2012 – Trailer

O documentário "Anderson Silva: Como Água" será lançado no...

Thierry Henry pode retornar ao Arsenal por 2 meses

O treinador do Arsenal, o francês Arsene Wenger, confirmou...

Arquétipos e caricaturas do negro no cinema brasileiro

Um dos questionamentos mais frequentes feitos ao cinema brasileiro...
spot_imgspot_img

Em autobiografia, Martinho da Vila relata histórias de vida e de música

"Martinho da Vila" é o título do livro autobiográfico de um dos mais versáteis artistas da cultura popular brasileira. Sambista, cantor, compositor, contador de...

Como as escolas de samba nos ensinam sobre ancestralidade

Desde que foram criadas, escolas de samba têm sido espaços de ensino e aprendizado. Carregam no nome a sua missão: ser escola. Ensinam sobre...

Samba, amor e Hip Hop

A quem nunca viu o samba amanhecer, Geraldo Filme aconselhava que fosse ao Bixiga para ver, ao quilombo da Saracura, à sede da Vai-vai....
-+=